Tradição, o álibi da incompetência

Aqui a História acontece a primeira vez como tragédia, e a segunda, bem como as próximas, como uma tragédia ainda maior.

O brasileiro tem um comportamento bastante pernicioso em relação à própria saúde. Me refiro àquela mania de só pedir socorro quando os sintomas do mal-estar começam a se manifestar. Não há a cultura da medicina preventiva. Aquele hábito saudável de ir periodicamente fazer exames e, se necessário, tomar algumas providências para se adiantar às falhas comuns do organismo.

A maioria das pessoas só busca atendimento clínico quando sente dor, por mais que os médicos advirtam que algumas enfermidades, como o câncer, por exemplo, são sorrateiras, silenciosas, quando aparecem os primeiros indícios, já não há mais nada a fazer. Quando diagnosticado, ao paciente, na maioria das vezes, só resta procurar uma funerária e encomendar o caixão.

Essa tradição é resultante de mero condicionamento mental, no caso do indivíduo, ou cultural, quando se trata de uma coletividade. Algumas pessoas se justificam com a falta de tempo, precisam trabalhar; ou da carência financeira. Esses argumentos não passam de subterfúgio escapatório, pois é óbvio que os efeitos colaterais da falta de cuidado de hoje exigirão mais esforços amanhã. Quanto aos recursos, a sabedoria popular anuncia, e a prática confirma, que prevenir é mais barato e eficiente do que remediar.

Naturalmente existem os fatalistas, seres vencidos pela superstição de que, quando as coisas têm de acontecer, elas acontecem, com ou sem prevenção. E não faltam os clichês do senso comum, com ênfase no vitimismo do tipo “a vida do pobre é assim mesmo, não adianta, a gente nunca vai melhorar”. E se conformam com a simples sobrevivência sofrida, arraigada a um preconceito que só reforça a situação, já de si tão difícil. E o pior é que não se trata de gente economicamente desfavorecida, pois mesmo quem tem acesso aos serviços de saúde sofre do mesmo mal.

No quesito alimentação, por exemplo, se adaptam a uma refeição sem valor nutritivo, mas com muitos ingredientes, como sal, açúcar, gordura, tudo em excesso, mesmo que no final o repasto saia mais caro do que uma ração mais balanceada.

E ainda temos os negacionistas. Aqueles que atacam a medicina, a ciência em geral como pretenciosa, manipuladora, que esconde verdades para poder faturar às custas de doenças por ela mesma produzidas. Um amontoado de asneiras que nem merece resposta.

Até aqui, falamos da condução da vida pessoal. Mas, quando um desses indivíduos assume um cargo de autoridade na administração pública e deve se preocupar com a vida de toda uma comunidade, o comportamento é igual. Embora os motivos ocultos sejam diferentes.

Veja-se o caso das enchentes que inundaram o Estado do Rio Grande do Sul nos últimos dias. Alguém foi pego de surpresa? Claro que não. Não havia como prever que as chuvas seriam tão avassaladoras? Outra desculpa esfarrapada. Há anos que os especialistas em assuntos climáticos vêm emitindo sucessivos alertas para a situação calamitosa do meio ambiente, e da necessidade de se adotar medidas no sentido de evitar catástrofes.

Mas, o brasileiro espera sentir dor primeiro para depois ir ao pronto-socorro. Só que nesse caso, a dor é alheia. E há motivos pra desconfiar do desprezo pelas adversidades de enorme contingente de seres humanos. Falta de recursos? Ninguém mais acredita nessa ladainha.

Não é necessário ser um técnico graduado para perceber que investimentos sérios em obras de infraestrutura, por exemplo, no escoamento das chuvas, seriam muito menos dispendiosos do que os gastos para atender aos flagelados depois do temporal. E ainda evitaria o sofrimento vivenciado ano após ano. Mitigado com paliativos que não vão além do assistencialismo. Também não precisa ser doutor em alguma coisa para saber que na temporada de chuva do próximo ano vai se repetir tudo de novo.

Aqui a História acontece a primeira vez como tragédia.

E aqui a História acontece a primeira vez como tragédia, e a segunda, bem como as próximas, como uma tragédia ainda maior. A farsa é só daquelas autoridades irresponsáveis, que fingem estar empenhados no atendimento humanitário às pessoas que tiveram casas e móveis arrastados pela correnteza. Houvesse verdadeiro zelo pela sorte dos mais necessitados, esgaçariam as mangas durante o ano todo na execução de obras que evitassem a desgraça, em vez de correr com equipes de salvamento quando a vítima já está se afogando.

A verdade é que o poder público precisa desse sofrimento popular para se manter no controle através de ações assistencialistas. Jogando boa parte do ônus sobre a sociedade civil. Ocasião em que sobra oportunidade para fazer discursos sentimentalistas sobre a índole de colaboração voluntária do mesmo povo. E a crença na força cega e inelutável do destino é um álibi perfeito para a omissão criminosa.

Mas, o povo não é solidário por vocação, ou por prazer, e sim por necessidade. Pois quem vive exposto às desventuras da vida, sem contar com a segurança oficial e permanente dos poderes instituídos, sabe que a única solução é a união das misérias pessoais para enfrentar a penúria maior, que é a falta de vontade política para atender às necessidades básicas da população. Aí sim, ele sabe que esse mal não tem cura, a ciência ainda não criou um remédio para curá-lo.

Foto de Kelly Sikkema na Unsplash