2022: O ano em que os nossos herois morreram sem overdose

2022: o ano em que os nossos herois morreram sem overdose.

O ano de 2022 acabou com um saldo bem negativo no mundo das celebridades. A ceifadeira da morte passou cortando, sem piedade, algumas das cabeças que se destacavam da multidão anônima da ralé.

Não lembro de todos os passamentos do ano, faço uma lista aleatória apenas de alguns que marcaram minha vida de alguma maneira. Por essa questão de valor emocional, imponho uma limitação geográfica, me detenho nas personalidades brasileira, o que significa que deixo de lado a Rainha Elizabeth II, da Inglaterra, que teve o mérito de ser a monarca que mais tempo permaneceu num trono. Para mim isso não é suficiente.

Começo, portanto, por Jô Soares, a personificação mais completa do mito do gordinho engraçado. Lembro dos tempos de Faça humor, não faça guerra, programa em que, contracenando com outro saudoso que morreu há bem mais tempo, Renato Corte Real, eles viviam a dupla Lelé e Da Cuca, os dois montados em cavalinhos de pau, como dois militares numa guerra dos tempos antigos, fazendo rir toda a família, num tempo em que o riso era suspeito de subversão e, não raramente, censurado.

Essa fase felizmente passou, mas o Jô continuou ostentando um talento inquestionável para divertir o público. Veio então o programa de entrevistas, onde ele esbanjava inteligência, cultura e erudição e a gente seguia religiosamente o apelo de não ir para a cama sem ele.

Jô foi acompanhado pela Claudia Jimenez, a eterna dona Cacilda, da Escolinha do Professor Raimundo, no tempo em que explorar os estereótipos sexistas era piada de sucesso garantido. Outra atração que eu também não perdia.

No mundo da música, a indesejada das gentes também tocou algumas notas dissonantes. O tremendão Erasmo Carlos atirou os olhos pro céu, voou por cima dos aviões em direção ao infinito. A lembrança mais remota que guardo do amigo de fé do rei Roberto é quando ele vivia sentado à beira do caminho, redigindo umas mal traçadas linhas. Muitas delas se tornaram canções inesquecíveis, inclusive cantadas pelo irmão camarada Roberto. Por uma estranha associação de ideias, a composição que me vem à mente agora é Viver por viver.

Para fazer dueto com Erasmo, as Parcas escolheram a Gal Costa, a incontestável musa do tropicalismo. Minha infância não foi muito rebelde, só muito mais tarde formei ideia do que significou o movimento tropicalista em termos culturais. E mesmo sem entender a letra, sem conhecer o contexto que foi escrita, a canção London, London, autoria de Caetano Veloso, marcou de maneira significativa aquele período de vozes amordaçadas, em que o único meio de se ouvir música eram as emissoras de AM.

Alguns anos mais tarde, com aparelho de televisão em casa, aos domingos, eu acordava bem cedinho só para assistir ao Som Brasil, apresentado pelo sempre lembrado Rolando Boldrin. Outro que pegou a viola e foi cantar no céu este ano, deixando na orfandade milhares de apreciadores da autêntica música caipira. Eita vida marvada, sô!

Mas, a perda mais chocante, porque mais recente, ainda que já previsível, foi a do rei Pelé. Na verdade, nunca fui encantado por futebol, nunca torci para nenhum um time. Esse esporte só atrai minha atenção uma vez a cada quatro anos, na Copa do Mundo. Mas hoje pode-se dizer que Pelé se transformou numa ideia. Um mito que transcende os lances geniais que ele realizou em campo.

Ainda que muito criança, sem ter noção da verdadeira dimensão das coisas, posso dizer que vi Pelé jogar. Claro que só pela televisão, no ano do tricampeonato mundial, o último dele na Seleção Brasileira. Confesso que não lembro de nenhum drible memorável pois minha assistência ao jogo se limitava a saber o resultado da partida, e não distinguia nenhum dos craques.

A lembrança mais marcante é da narração, aquela “olha lá, olha lá, olha lá linda, linda, linda”, e é claro, o hino, aquele dos noventa milhões em ação, uma canção impregnada de ufanismo verde-amarelo que conclamava a todos seguir o caminho da vitória. “Pra frente Brasil do meu coração”.

Eu era muito criança para saber o valor do que estava presenciando, mesmo assim, hoje, não desprezo uma oportunidade de bravatear uma história que nem vivenciei com a intensidade merecida, só para causar inveja aos mais jovens. Gosto de falar “eu vi o Pelé jogar”.

O que me parece bem significativo foi o rei do futebol morrer justamente poucos dias após mais uma derrota da Seleção Brasileira na Copa do Mundo. No momento em que qualquer brasileiro deve colocar a mão na consciência e dizer que o futebol do inesquecível escrete canarinho, aquele que Pelé criou, não existe mais.

Sim, o ano de 2022 deveria ser consagrado como o do fim de alguns mitos brasileiros. Como o futebol arte, o país da alegria, o povo cordial. Morrem os mitos, mas os ídolos morreram de causas naturais, aproveitaram a vida até o último momento. Nem precisaram de overdose de nenhuma substância artificial.

O que nos serve de consolo é que, a partir de janeiro de 2023, são nossos amigos que estão no poder.

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