No livro Angústia, de Graciliano Ramos, Luis Silva, é um escritor fracassado. Funcionário público de profissão reforça o salário com a venda dos produtos de sua escassa habilidade literária: discursos para autoridades, poemas para conquistadores despreparados, etc. Em determinada passagem, entediado por ler uma história sem atrativos, ele faz a seguinte afirmação: “Os livros idiotas animam a gente. Se não fossem eles, nem sei quem se atreveria a começar”. E sobre a obra que tem em mãos: “isto é tão ruim que eu, com trabalho, poderia fazer igual”. Levado muito mais pelo autodesprezo do que pela visão crítica, o personagem determina um valor para a má literatura: segundo ele, um escritor desprovido de talento deveria se abastecer apenas de composições de baixa qualidade, pois nelas ele encontra a resignação de não ser o único abandonado pelas musas.  O paradoxal é que, com esse raciocínio, ele não seria leitor da ficção da qual é o personagem principal, um exemplo indiscutível de realização de alto nível na literatura brasileira.

Mas, se Luis Silva tivesse se dedicado mais à consolidação de sua carreira literária, teria encontrado outras utilidades para a literatura ruim. Por exemplo, a de material de estudo. Então, ele concluiria que um escritor não se alimenta só de obras sublimes. Uma seqüência mal estruturada de cenas e ações pode ser um excelente ponto de referência se o leitor se propuser o papel de revisor, e em vez de condenar o livro, brincar de reescrevê-lo, ensaiando soluções para as passagens que julga problemáticas.

Animado por esses argumentos eu me submeti ao sacrifício de ler A Divina Pastora, de José Antônio do Vale. Basta algumas páginas em contato com essa obra para o leitor descompromissado abandonar qualquer intenção de ir até o fim, ou se questionar sobre os propósitos de persistir numa tarefa tão enfadonha. Esse livro possui o mérito de ser o primeiro romance da literatura gaúcha, e um dos primeiros da literatura brasileira, publicado em 1847. O autor passou para a história com o apelido de Caldre e Fião, que hoje dá nome a uma rua e uma linha de ônibus em Porto Alegre. Talvez o pioneirismo seja um álibi para amenizar as várias falhas dessa história: trama desconexa, personagens inverossímeis, cenário idealizado sob influência do Romantismo europeu. Para completar, o herói, várias vezes denominado “o monarca das coxilhas”, é um cavaleiro medieval transportado para o pampa gaúcho, onde encontra o espaço ideal para vivenciar os valores de honra e coragem entre os rebeldes farroupilhas.

Até então, o pior exemplo de literatice com o qual eu tinha me ocupado nos últimos anos, era Núpcias de Fogo, de Nelson Rodrigues. Lá estão alguns exemplos bem expressivos de narrativa mal engendrada: ações sem nenhuma motivação e personagens sem história, sem nenhum tipo de enraizamento, seja social ou filosófico, arrastados em cena apenas por um implausível desequilíbrio emocional.

O personagem Luis Silva é um homem realista. Tem perfeita noção da própria mediocridade, e não se perde em crises de consciência por produzir textos sob encomenda, que receberão assinatura de estranhos. Com os trocados obtidos na venda desses trabalhos, defende o aluguel e toca a vida em frente. O problema é que ele se utiliza da má literatura para justificar sua incapacidade de criar algo de valor artístico. Tivesse ele traçado um projeto de autoformação, aproveitaria os livros mal escritos para se exercitar na técnica de escrever. Em vez de apelar para a autoindulgência derrotista do tipo “isso até eu faço”, enriqueceria o prazer da leitura se, posicionado no lugar do autor, pensasse em alternativas para melhoria do texto. Esse pode ser um caminho interessante para enfrentar as diversidades da vida literária como ela é. Com essa atitude de leitor todo livro é bom e até um romance de Nelson Rodrigues pode ser uma experiência proveitosa.

Escrever Comentário

Seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados *