A classe média e o lulismo

Meu primeiro ingresso na universidade foi no curso de ciências Sociais, na UFRGS, começo dos anos 80. Final do regime militar, campanha das Diretas, tudo era motivo pra sair pra rua, protestar, discutir. Com a eliminação da censura, a gente vivia a euforia da liberdade de expressão, e conversava muito sobre política, cultura em geral, a situação do país. Nessa época, o Lula era apenas um ex-operário que organizava greves e irritava muita gente de um lado e conquistava séquitos de outro.

No Brasil de hoje, vivemos de novo um clima de instabilidade, com várias tendências culturais e políticas tentando conquistar hegemonia, seja pelos meios legais estabelecidos pela Constituição, ou, para alguns, do jeito que for possível, pois, para certos grupos, a conquista do poder é justificada por si e dispensa preocupações de natureza legal e ética. E aquele mesmo personagem dos meus primeiros anos de universidade, o Lula, volta a espalhar pânico e ódio em vários níveis da sociedade, principalmente entre aqueles que não aceitam mudanças de regras no jogo quando estão ganhando. E para entender esse novo quadro que se apresenta hoje, recorro à minha antiga vocação de sociólogo para observar o que acontece no nosso país. E assim me deparo com uma leitura muito interessante, que me possibilitou testar algumas hipóteses já antes delineadas, e me proporcionou outras novas descobertas. Trata-se de Os Sentidos do Lulismo: reforma gradual e pacto conservador, de André Singer.

Como bom cientista político, o autor, antes de atacar ou bajular, tenta compreender o impacto que o surgimento de Lula causou no cenário político brasileiro e antever os possíveis desdobramentos do que ele chama de realinhamento eleitoral, uma nova tendência do eleitorado brasileiro. Sem desprezar as alianças de ocasião com setores mais conservadores da velha oligarquia política, o autor vê uma mudança significativa no perfil do eleitorado de Lula a partir dos programas de distribuição de renda do primeiro mandato, quando o subproletariado foi cooptada por meio dos programas de inclusão social. Uma multidão que antes vivia abaixo da linha da miséria e que no passado sempre se alinhou ideologicamente às propostas das velhas elites, por medo de uma ruptura da ordem estabelecida. Já na eleição de 2006, essa camada, agora protagonista de uma trajetória de ascensão econômica, aderiu em peso ao lulismo, criando-se assim a polarização entre ricos e pobres na política brasileira.

As afirmações do autor, que não se resumem a esse ponto citado aqui, são resultado de avaliações de gráficos das eleições, pesquisas e estatísticas, bem como de sua experiência pessoal como porta voz e secretário de imprensa da presidência da república durante o período estudado. Desse trabalho resulta um painel bem abrangente do atual estado da política nacional, sem perder de vista nenhum elemento importante do contexto.

Mas, a meu ver, ou pelo menos para as questões que orientam as minhas preocupações atuais, o que mais chama a atenção é o comportamento da classe média. Que a classe média brasileira nunca se destacou por nenhuma qualidade intelectual, isso não é novidade. Desde a década de trinta do século vinte, quando surgiu no cenário político como produto da industrialização urbana promovida por Getúlio Vargas, esse segmento, que se equilibra entre o desejo de ascensão à elite e o medo de cair na pobreza, sempre priorizou apenas o status social, medido sobretudo pelo poder de consumo. Mas que seja uma massa tão maleável e tão manipulável a serviço da classe dominante, é coisa que surpreende até mesmo quem possui o hábito de observação mais atenta. Na eleição de 2002, a classe média encontrava-se achatada pelo peso da administração neoliberal imposta pelos tucanos e aderiu em peso às propostas petistas, como última esperança de recuperar seu padrão de consumo. Mas no primeiro mandato de Lula, as políticas de distribuição de renda destinadas aos mais pobres causaram pânico na esfera mediana por dois motivos básicos. Primeiro a frustração da expectativa de um governo em que pudesse se agarrar, e segundo, o medo de ter que dividir com os mais pobres aquele espaço onde antes ela circulava com exclusividade. Incapaz de entender que a melhoria da base social poderia trazer mais tranquilidade para toda a sociedade, a classe média voltou correndo a pedir socorro aos seus antigos candidatos.

Mas os reais motivos do terror causado pelo novo quadro social não podiam ser expressos com tanta sinceridade, afinal, é necessário manter algum resquício de dignidade. Então, a partir do ano de 2005, os escândalos causados pelas denúncias de corrupção entre os petistas deram o tom para o discurso de protesto.

Com a vida focada no imediatismo do presente, a classe média não consegue enxergar a dimensão histórica de qualquer problema de cunho social e nem perceber a natureza estrutural do fenômeno da corrupção na sociedade brasileira. Ela vive a muitas léguas daquele clima de longos debates dos meus primeiros anos de faculdade. E como o real motivo, no plano político, é reconduzir ao poder os antigos mandatários, engendrou-se uma trama maniqueísta, bem ao nível das telenovelas, onde os petistas aparecem como vilões sem escrúpulos, e do outro lado, os guardiães da moral e dos bons costumes, mesmo que no passado esses paladinos das causas nobres tenham protagonizado escândalos de proporções semelhantes, ou piores.

Considerando-se que se trata de uma parcela que goza do acesso a bens culturais e à informação mais qualificada, é espantoso ver essa fração da sociedade se comportar como rebanho e aderir a um discurso que escamoteia a essência dos fenômenos a que está submetida. Avesso a discussões de natureza especulativa, o indivíduo mediano se contenta com uma simplória visão de mundo, onde tudo se resume a escolhas definidas pelo caráter moral, e tudo encaixa num plano de fácil compreensão.

Outra constatação preocupante que se apresenta no livro de Singer é que a classe média tem sido decisiva na manutenção do espectro conservador da política brasileira. Mais dramática se torna a situação porque ela não percebe que é a principal vitima do monstro que alimenta.

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