Os tempos velozes e os internautas furiosos

A cultura do cancelamento não desenvolveu a noção de contraditório.

A internet é o fenômeno mais revolucionário dos últimos tempos. Alterou drasticamente os hábitos de todos os habitantes do planeta. Pela possibilidade de conexão instantânea, o mundo foi reduzido às dimensões de uma bola de tênis. Isso para quem acredita que a terra é redonda. Para os terraplanistas, a comparação pode ser com uma bolacha de água e sal.

Seja qual for a crença no formato da terra, o importante é que, na frente de um computador, qualquer indivíduo pode se conectar com outro instantaneamente em qualquer canto do nosso mundo, vasto mundo.

Quem não se deslumbrou ao perceber o potencial de comunicação e de aproximação entre os terráqueos? Procurar companhia, confabular com as pessoas com quem se tem afinidades, e que antes, pelos métodos antigos, jamais se conseguiria. Palestrar com desconhecidos, cada um no aconchego de seu próprio lar, pelo simples prazer de um bom papo, uma troca de experiências daquelas que nos faz acreditar que temos algumas almas gêmeas espalhadas pelo universo.

O tempo também foi atingido nas suas dimensões mais corriqueiras, de tédio para uns e ansiedade para outros. Com a velocidade com que as informações circulam, as notícias envelhecem de um dia para outro. Um tema que causou grande polêmica ontem, hoje caiu no esquecimento, é passado. Tudo isso é fantástico. Um show da vida e transformou a população mundial em pessoas mais felizes. Só que não, como diziam os adolescentes do ano passado.

Eu tenho uma teoria que diz que o ser humano não consegue viver feliz por muito tempo, quando a felicidade está em vias de se tornar um hábito, inventa-se algo para estragar tudo, voltar aos tempos em que o importante era sonhar em um dia ser agraciado com a bem-aventurança.

E o que os usuários da Internet inventaram para retornar à fase de distanciamento, solidão e afastamento uns dos outros, que caracterizavam os tempos pré-digitais? A cultura do cancelamento. Se há muita facilidade de se comunicar, há também a de se trumbicar, como diria o velho guerreiro. E em consequência, pôr em exercício a mais bélica das qualidades humanas: a estupidez.

Cancela-se por tudo. Discordou de mim? Quem você pensa que é para ter uma ideia diferente da minha? Conversar? Para quê? Não gostei da maneira como você deu aquele like na minha foto. Você só pode ser um comunista, um bolsonarista, um macho escroto, uma feminazi; não tenho necessidade de conversar para perceber isso. Bloqueado. Respondeu ao comentário de outra pessoa na mesma postagem que eu comentei e ignorou aquela interpretação brilhante que eu expus? Desprezou até a pesquisa na qual me empenhei tanto no Google para poder responder com tanto brilhantismo? Bloqueado.

Eu mesmo já perdi as contas das amizades que me deletaram por ter cometido a indelicadeza de divergir de alguém. Desde as punições mais leves, do tipo “vou continuar teu amigo, mas não falo mais contigo” até a execução sumária, o cancelamento. Algumas me consideraram digno de receber uma resposta, ainda que cheia de adjetivos como machista, misógino, racista, homofóbico, comunista, petralha, defensor de bandido, e por aí vai.

Vale a pena narrar os dois casos mais esdrúxulos. Uma vez, uma moça que exibia no perfil um currículo invejável de doutora em Literatura, pesquisadora na área do discurso, atuação em várias instituições de respeito, postou um texto onde ela discorria com desbragados louvores sobre os Amores Líquidos, do Baumann. Casualmente, eu também tinha escrito um texto sobre o mesmo tema, porém, uma visão completamente oposta. Então, como comentário, compartilhei o link do meu blog com a referida resenha. Nunca escondi minha indisposição por essa ladainha líquida que cativou tantas pessoas pouco versadas em reflexões mais profundas sobre fenômenos humanos. Considero o discurso de Baumann uma chorumela moralista de um saudosista que se perdeu no tempo. Mas, naturalmente que na minha tentativa de aproximação com a escritora, eu não usei semelhante vocabulário, e o meu texto até que tem uma argumentação aceitável. Por isso, achei que merecia ao menos um “discordo”. Mas, passaram uns dois dias, sem ter visto nenhuma reação, bateu a curiosidade de conferir. E constatei a triste verdade. Fui bloqueado. Assim, sem nenhum aviso prévio, sem justificativa. Pelo meu atrevimento em postar um comentário na postagem dela? Pela deselegância de entoar uma nota dissonante? Solidariedade ao pensador? Não descartei a possibilidade de que ela temesse que a minha tese tivesse fundamento, consequentemente, a dela seria no mínimo discutível. Tem gente que não consegue viver com esse tipo de insegurança.

Outro caso curioso. Uma pessoa com quem tive a oportunidade de conversar pelos métodos antigos, ou seja, pessoalmente, por quem nutria até certa admiração, mantinha com ela um relacionamento social educado e respeitoso no meio virtual, nas minhas interações com ela me mantinha estritamente nos limites do assunto proposto, respondia no mesmo tom a eventuais comentários dela, tudo como mandam as regras da vida civilizada. Um dia, notei a prolongada ausência dela na minha TL, mais uma vez curioso, descobri, com grande surpresa, que eu fora alvo da mais pesada punição virtual: bloqueio. Esse caso é o mais emblemático porque até hoje não faço a mínima ideia de qual crime eu teria cometido. E, por óbvio, não vou atrás da pessoa para tirar satisfação.

Essa é a questão mais patética. A cultura do cancelamento não desenvolveu a noção de contraditório, não há chance de ouvir a parte contrária. Cometeu um erro? Não importa que a falha tenha sido cometida por um simples equívoco. Achou o comentário da postagem agressivo? Desnecessário apurar um possível desencontro na interpretação. O que importa é que a pessoa não agiu como o outro esperava, ou melhor, a única maneira de agir que o outro admitia, porque a comunicação no meio virtual virou isso. Os tempos estão velozes e os internautas, furiosos, a gente está deixando de falar porque não sabe exatamente o que o outro aceita ouvir. Chega a dar saudade dos tempos de carta por correio. A gente não brigava tanto. É que as respostas demoravam mais tempo a chegar.

Photo by Jon Tyson on Unsplash