A Elite do Gosto

Fim de ano, verão, hora de fazer uma pausa nas leituras e nas reflexões filosóficas e tomar uma cerveja para amenizar o desconforto de um calor intenso de uma cidade sem praia. A pandemia nos obriga a permanecer reclusos, a vida passando lá fora. O que nos resta é mirar um pedaço de horizonte enquadrado na abertura da janela, contemplar o céu.

Até que o olhar de cansa do azul celeste e se recolhe ao interior da casa, percorre as estantes e pousa na lombada de dois livros que refletem justamente sobre a arte de beber. Cerveja e Filosofia, organizado por Steven D. Hales; e Vinho e Filosofia, organizado por Fritz Allhoff. Ambas as obras são formadas por artigos de vários autores, todos envolvidos de alguma maneira com o mundo das suas predileções etílicas, uns produzindo, outros vendendo e todos bebendo.

Com um copo na mão sempre teremos o que dizer sobre a bebida de nossa preferência, tanto um fermentado de uva quanto de cevada. Bom lembrar que essas duas preciosidades nasceram com a humanidade, ou possivelmente até antes dela, a se acreditar nas lendas que atribuem aos deuses a invenção de soluções tão maravilhosas. Seja quem for o gênio que legou à humanidade um presente digno das divindades, o fato é que se trata de um regalo que alegra a vida dos humanos há séculos.

Qualquer um que aborde o vinho e a cerveja com um mínimo de honestidade intelectual, quer dizer, um enfoque que não se limite ao aspecto puramente publicitário, precisa considerar a questão do gosto. E para quem bebe com boa dose de conhecimento sobre os processos envolvidos na degustação, não há como manter aquela sentença do senso comum de que gosto não se discute.

O gosto é uma faculdade humana exercida por células receptoras do paladar, as papilas gustativas, que existem em grande quantidade na língua e no céu da boca. São órgãos responsáveis por detectar as várias nuances dos sabores de tudo o que ingerimos e, nessa condição, dependem de ser excitadas. Todas as papilas são excitadas, mas nem todas as reações são percebidas, porque o reconhecimento de detalhes muito sutis é fruto de uma preparação anterior.

Isso significa que uma pessoa que se nutriu, ao longo da vida, de gastronomia mais diversificada, terá um paladar mais aprimorado, capaz de distinguir particularidades de sabor que passam despercebidas para quem se limita apenas a engolir qualquer coisa que sirva para saciar a fome ou a sede, sem se concentrar nos vários graus de reações sensoriais que aquilo lhe proporciona. Daí se conclui que paladar refinado é uma questão de treinamento e educação.

Uma pessoa que teve toda uma experiência gustativa, desde a infância, a base de refrigerantes vai ter muita dificuldade de perceber qualquer requinte de sabor diferente do adocicado enjoativo desse tipo de xarope. Isso vale para qualquer indivíduo habituado a engolir as cervejas tradicionais, feitas à base de malte de milho, para consumo em massa. Quando se deparar com uma legítima ‘ale’, feita com o puro malte de cevada, no processo de alta fermentação, é incapaz de desfrutar a variedades de sabores e aromas que emanam do copo.

O problema do “gosto não se discute” envolve variáveis que não devem ser desprezadas por quem não abre mão da qualidade de tudo o que põe na boca. É uma sentença com forte potencial para justificar os conformistas no comportamento de rebanho. É sabido que esses sucos de milho levemente alcoolizados, sem sabor e sem aroma, vendidos nos bares brasileiros com o nome de cerveja, tem uma produção muito mais barata, o que significa maior lucro. Um indivíduo que consome sem questionar o que lhe é disponibilizado, focado apenas na quantidade em vez da qualidade, como faz grande parte do público consumidor, garante alto retorno a uma produção de investimentos mais baixos. Mas não é só isso.

Imagine uma pessoa que de repente comece a questionar a qualidade das beberagens que lhe são oferecidas e vai em busca de outras opções que lhe tragam momentos de deleite mais forte e refinado. Então, ele descobre que existem outras cervejas e vinhos cuja degustação lhe desperta sensações de prazer gustativo nunca antes imaginadas. Ato contínuo, esse cidadão começa a desconfiar que talvez toda a sua vida esteja correndo num nível de experiências muito pobres, ditadas apenas pelos outros, e que provavelmente essa situação não se dê só nas libações que ele acompanha no happy hour com os colegas de trabalho.

Pode ser, ainda, que a vida tenha várias outras opções melhores que aquelas a que ele está condicionado. Só que, ao mesmo tempo, ele se dá conta de que não tem condições de ir em busca desse novo universo que ele vislumbrou através da cortina de espuma construída para ele com cerveja ruim. Ele viveu tanto tempo condicionado a se contentar com o mínimo necessário à sobrevivência material que é impossível sequer sonhar em ultrapassar as barreiras dos interditos. Ele passará a ser um rebelde, se não aceitar a impotência e quiser desfrutar o direito de se superar, ou será estigmatizado de elitista, se resolver enfrentar e superar suas próprias limitações.

Elitista é a classificação de cunho pejorativo que se dá a quem insiste em sair das filas e dos rebanhos dos consumidores adestrados para expressarem os mesmos desejos. E jogar com o medo do julgamento negativo é o melhor freio para manter alguém bem feliz no meio da manada de consumidores, aqueles que querem ser igual a todo mundo porque foram ensinados também que se afastar da turba é esnobismo.

E para as pessoas muito inseguras, cuja vida interior é instigada sempre por estímulos externos, e que entram em pânico ao serem diferenciadas da multidão, não há pecado maior do que ser apontado como carente de humildade. Sem dúvida, nesses casos, o apelo às idiossincrasias de uma individualidade, por mais frágil que ela seja, sempre rendem bons resultados.

Um grande paradoxo: reafirmar a individualidade, em tal contexto, é fazer exatamente o que todo mundo faz. É aí que entra o senso comum decretando que gosto não se discute. Melhor assim do que ter que aplacar revoltados ou aturar poses de soberba daqueles que se lançam em tentativas de experiências mais ricas do ponto de vista existencial ou mesmo estético.

Resumindo: uma boa cerveja, num dia de calor, além da certeza de nos tratarmos bem, com o devido cuidado com o que satisfaz nossas necessidades naturais de fome e sede, ainda nos deixa de alma leve, espírito inebriado, que começa a divagar sobre a arte de beber, porque a bebida que escolhemos para brindar nossos momentos de ócio. Ora uma Ale, no verão escaldante, ora um Borgonha numa noite de inverno, é um elemento constitutivo daquela imagem que queremos construir para nós mesmos, para fazer nossa autoexposição e marcar nosso lugar exclusivo no mundo.

Elitismo? Pode até ser, mas não há nada de negativo nisso, porque não há nada de errado em vivermos de acordo com nossas próprias referências, aquelas que fomos incorporando ao longo de nossa existência, independente das acusações de quem só sabe viver em bando.

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