A Mulher de Barba

Era uma vez eu, num camping de Florianópolis, mês de janeiro. Verão, férias, juventude, e aquela ânsia de correr para a praia e se jogar no mar, como um desejo de se livrar logo das impurezas do corpo e da alma. A grana curta não me deixava muitas opções, os acampamentos coletivos eram quase a única alternativa, então, peguei minha barraca estilo iglu e me instalei num camping à beira mar, um lugar daqueles onde a privacidade só existe nos atos que comprometem o decoro e a civilidade social.

Eis que no fim de uma tarde calorenta, eu me dirigia ao banheiro, uma casinha de alvenaria lá no fundo do camping, cujo requinte arquitetônico combinava com o resto das instalações, ou seja, tratava-se de um quadradinho com duas portas, nas quais havia duas placas, numa, escrito MASCULINO, e na outra, como já é previsível, FEMININO. Para chegar até lá partindo de onde eu estava, era necessário seguir por um caminho entre as outras barracas, um passeio em que eventualmente podia resultar num encontro de gente conhecida, quando não, a conquista de novas amizades. Pois, ao passar em frente a uma dessas moradas provisórias, cruzei com um menino de uns cinco anos, que brincava em frente, perto do banheiro.

A informalidade do local me permitia andar bem à vontade e eu usava apenas um calção, e carregava uma toalha sobre o ombro. Quando o garoto me viu eu já ia lá adiante, em direção à placa onde estava escrito MASCULINO. Foi então que ouvi a voz dele, que gritou, muito escandalizado.

– Mãe, aquela mulher entrou no banheiro dos homens!

Eu vi que ele se referia a mim, mas não dei importância, tomei o meu banho e saí, com o mesmo calção e a mesma toalha sobre o ombro. Só que, agora, o infante me viu de frente, e mais apavorado ainda e gritou

– Mãe, olha lá, aquela mulher tem barba!

Não lembro se houve alguma resposta da mãe, só sei que ri muito, pensando nessa capacidade que as crianças têm de continuarem vivendo na fantasia, mesmo que a vida real apresente outra versão. Por algum motivo ignorado ele botou na cabeça que eu era uma mulher e, mesmo depois de ver que eu tinha barba, era mais fácil levar adiante aquela crença e conceber uma mulher com barba do que abandonar o mundo que criara. Claro está que naquele momento, em alguma historinha que ele criou, eu tinha que ser uma mulher que entrou no banheiro dos homens, se assim não fosse, desmoronaria todo o castelo que ele deve ter feito quando me viu.

No universo infantil, esse processo é muito saudável e desenvolve a criatividade, que poderá gerar um adulto com mais habilidade para investigar novos ângulos das coisas. Só vira um empecilho quando o adulto continua preso a esse estágio mental, não consegue se livrar dessa primeira imagem fictícia, e se agarra nela contrariando qualquer evidência do mundo concreto. Por mais que a realidade se manifeste em contrário, ele prefere torcer os fatos para que caibam nos limites de suas fábulas.

Tenho lembrado muito seguido desse episódio ultimamente ao observar as reações de certas pessoas ao que está acontecendo no mundo. Veja-se o que acontece na cabeça do presidente da República do Brasil sobre a atual pandemia de corona vírus, que já matou miliares de pessoas mundo afora, e por aqui, ainda nem se mostrou em todo o potencial de destruição. Por algum processo psíquico que ninguém consegue entender, o ex-capitão encasquetou que o vírus assassino não passa de uma quimera, uma pegadinha inventada pela mídia para desestabilizar o governo dele. Mostrar os óbitos, os hospitais lotados, o pânico que assolou o mundo inteiro, nada disso é suficiente para afastar aquela superstição inicial.

Que haja muitos homens biologicamente adultos cujo cérebro continua operando apenas as sinapses necessárias para as tarefas do jardim de infância não é novidade para ninguém, nem provoca maiores transtornos no ciclo normal da vida. Mas esse gosto pelos delírios infantis pode resultar em tragédia quando um desses homúnculos, com a capacidade mental bastante comprometida devido a fixação nos jogos mentais da puerícia, enfia na cabeça que quer ser presidente da república. Aí, no lugar das demandas reais da nação, ele vai ver mulheres de barba todos os dias invadindo os banheiros masculinos. E volta e meia vai entrar em cadeia nacional para pedir a seus apoiadores que cortem a barba daquelas despudoradas e ensinem a elas a entrarem no banheiro correto. Assim, ele vai resolver logo o problema imaginário da ordem no banheiro, mas nunca vai entender de onde saiu aquela mulher de barba.

Photo by Sharon McCutcheon on Unsplash

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