A poesia do prazer

É bom não generalizar quando se fala de literatura feminina. Mas, sempre deixando espaço para outras interpretações, creio que a maioria dos textos sobre sexualidade feminina, escritos por mulheres, sejam de prosa ou poesia, priorizam o aspecto romântico da vivência sexual. Ora, considerando-se que a paixão, em tese, é direcionada a uma única pessoa, conclui-se que o traço mais evidente dessa relação seja a exclusividade afetiva, ou seja, a monogamia, valor constituinte da família tradicional cristã e burguesa. Sobe esse ponto de vista, pode-se dizer que é uma literatura que se limita a reafirmar valores ideológicos já consolidados, que alimentam um sistema social e político cuja força opressora reprime com mais intensidade justamente a sexualidade feminina. Abordagem que redunda numa visão conservadora, portanto.

Mas, felizmente aparece, volta e meia, uma exceção digna de louvor. É o caso do livro Clitoria, da Adriana Mondadori. Inicialmente, convém destacar a associação da sexualidade com fenômenos da natureza, o que nos leva a conceber o ato sexual como uma atividade natural, totalmente despido das causas morais e ideológicas, criadas para restringir a libido a uma manifestação romântica ou ao mero ato reprodutivo. No poema, Defloração, por exemplo, o ato sexual é descrito como uma conjunção de elementos da natureza, que se encontram num fluxo de desejo e correm juntos até o momento do clímax.

o colibri afoito pela gruta nunca

habitada, coberta pelo véu impermeável

desvelada, a branca e suave espuma

gotejou

nas coxas trêmulas

a grama está mais verde

Outros dois tópicos merecem destaque, o primeiro, a questão do olhar. Naquele registro que mencionei no primeiro parágrafo, e que eu chamaria de tradicional, o olho feminino se mantém naquele papel de janela da alma, e nessa função, capta apenas as qualidades espirituais. No livro da Adriana, o olhar está voltado para o mundo real do corpo físico, e se sente atraído pelas curvas, pelas saliências que despertam o desejo e conduzem os corpos a uma explosão de prazer, como no caso de Velvet:

refestelada no sofá

observo seu andar até a mesa

morangos e hortelãs temperam a vodka

os flancos sutis sobram

na calça de cintura baixa

ondulando suas costas

desnudas

balança os quadris

O outro tema é justamente aquele que só o olhar consegue apreciar: o movimento. O movimento é componente essencial da sensualidade. Um corpo estático, por mais que chame a atenção pela beleza, não desperta o mesmo desejo que um corpo que bamboleia no espaço. Um corpo feminino serpenteando numa coreografia de dança é uma estratégia muito eficiente de sedução.

No poema Cio, lemos a descrição de uma cena em que dois corpos são arrastados pelo impulso incontrolável do desejo espontâneo, em busca do prazer sem culpa, sem as amarras dos valores morais. Nesse poema, a natureza se manifesta na temperatura que incendeia os corpos:

pessoas seminuas

transitavam pelo bar quente

naquela noite úmida

(…)

uma onda de calor se espalhou pelo meu corpo”.

Ou ainda no Fim de noite, em que o desejo não consegue se conter até os protagonistas chegarem a um abrigo mais reservado e explode nas escadas, ao som de um elevador.

No poema Volúpia, uma mulher entregue a uma intensa relação erótica consigo mesma, aquela que o senso comum rotulou como prazer solitário.

Em todos os exemplos citados não há ocorrência das fantasias românticas, esse discurso que condiciona o ato sexual dentro de uma estrutura de valores que impingem aos corpos uma condenação implacável quando o enlaçamento se dá fora das convenções preestabelecidas.

É bom lembrar que o amor romântico é uma invenção medieval, do século XII, coincidente com os primórdios da família burguesa, cujo efeito indubitável foi o de encerrar a mulher nos limites do ambiente doméstico. Sendo ela, por definição desse mesmo período, um ser capaz de doação exclusiva, dedicação integral aos alvos dos seus afetos, o papel da mulher seria naturalmente o de cuidar e zelar pela administração e boa saúde do dono da casa e de seus rebentos. Nessa concepção, a felicidade da mulher é o bem-estar dos que vivem sob os seus cuidados. O enfoque da Adriana neste livro nega essa mentalidade ao afirmar que a mulher deve ser, e é, protagonista de seu próprio prazer.

Naturalmente, a obra não se esgota nessas meditações expostas aqui. A sensibilidade poética da Adriana vai além das propostas desta resenha. O que importa é assinalar essa abordagem em que o prazer flui livre das barreiras ideológicas, transformado em obra literária. Uma obra com esse propósito será sempre bem-vinda, pois como disse a autora, na dedicatória do meu exemplar, “precisamos falar de gozo e poesia”.