A Realidade Sonhada

Então começou a campanha eleitoral. E com ela as entrevistas dos candidatos. É bom assistir sempre que possível, não para conhecer as ideias e planos, porque dos atuais aspirantes ao cargo de presidente, já se conhece bem tudo o que serão capazes de fazer. Pode-se acompanhar essa programação meio oficial das emissoras de televisão mais por curiosidade, quem gosta de ver até onde um político é capaz de ir em termos de retórica evasiva, dissimulação e até mesmo o recurso da mentira, sem o menor constrangimento.

O primeiro entrevistado foi o atual presidente da República, candidato à reeleição. Nada do que ele pudesse dizer surpreenderia qualquer um, tendo em vista o que ele já fez e disse nos quase quatro anos de governo. Ele seguiu a própria cartilha: mentiu, descreveu um país que só existe nos delírios dele. Sem o mínimo compromisso com a realidade. E adulterou fatos para parecerem mais reais do que realmente são.

É o caso do Auxílio Brasil, que o candidato insiste em apresentar como uma criação dele, quando acusado de omissão do governo quanto ao combate da pandemia da Covid-19. Mentira deslavada. Em primeiro lugar, o referido auxílio é apenas um novo nome para o Bolsa Família, programa de distribuição de renda que já existia; segundo, tratou-se de uma medida para combater os efeitos econômicos, em socorro aos mais atingidos pelas medidas sanitárias como isolamento social e fechamento de parte do comércio.

Mas, uma campanha de prevenção, com vistas a combater ou conter o vírus, simplesmente não foi sequer projetada e as que apareceram, por iniciativa dos governadores dos Estados, foram sistematicamente boicotadas. Qualquer criança é capaz de fazer essa distinção, menos o postulante a mais quatro anos no comando da nação.

E não parou por aí. Ao ser interpelado sobre a imitação de uma vítima da Covid morrendo asfixiada, uma das cenas mais grotescas protagonizadas em público pelo presidente, ele negou sem o menor pudor, embora existam vídeos que comprovam essa estupidez. Com a persistência da pergunta, ele apenas pediu para mudar de assunto, como se estivesse num bate-papo de mesa de bar, e não num momento para exposição de seus possíveis méritos para exercer mais um mandato como presidente.

Mas a característica mais marcante do primeiro entrevistado é a mania de perseguição. É esse aspecto psicológico que o torna uma presa fácil da teoria da conspiração, que suspeita de tudo e qualquer coisa que possa parecer um empecilho a seus interesses. Mesmo que se trate de problemas naturais do cargo.

Exemplo bem ilustrativo é a reação agressiva a qualquer tipo de questionamento. Nada mais natural que, quem exerce um cargo eletivo, seja intimado por adversários a prestar informações sobre seus atos. Faz parte do jogo político de uma república democrática. Mas o atual presidente vê tudo como ataque pessoal e, em vez de estabelecer um diálogo com o opositor, com o propósito de esclarecer seu ponto de vista, refugia-se numa postura de defesa de quem está sob ataque. Até a voz adquire um tom defensivo. Mas perguntar não ofende, presidente.

Até aí, nada diferente do que se podia esperar de um indivíduo cuja personalidade já apresentou vários sintomas de sociopatia. O que é realmente escandaloso é que esse homem continua com uma legião fixa de devotos e seguidores. Não há mais dúvidas de que não estamos lidando com uma simples ideologia política, e sim com um nível bem elevado de patologia social.

O público que se deixou enfeitiçar por truques de prestidigitação apresenta os mesmos traços psicológicos do ídolo, isto é, distorce os fatos para que caibam no mundo paralelo criado pelo delírio coletivo desses eleitores. Eles viram, na referida entrevista, um momento de reafirmação daquilo que acreditam ser as inúmeras habilidades e indiscutível valor do líder que tanto veneram; sonharam ter assistido a um show de inteligência que desmascarou o que chamaram de inépcia dos entrevistadores.

Mesmo que não tenham nenhuma resposta para apresentar como exemplo dessa incrível força de caráter, dessa entidade mitológica que creem ter sido enviada do céu para combater os males terrenos, eles continuam a entoar a ladainha da predestinação daquele a quem dão seus votos como uma oferenda sagrada. Em resumo, eles viram apenas aquilo que já imaginavam que ia acontecer: um deus lançando sua fúria em forma de raios mortais sobre a cabeça dos infiéis propagadores das heresias pagãs, que se encontram disfarçados de jornalistas nas emissoras de televisão.

É difícil convencê-los de que não vivemos dentro de uma fábula da mitologia, e que só com os olhos bem fixos na realidade é que podemos sonhar com a construção de um mundo idealizado.

Photo by Marília Castelli on Unsplash