A Ficção da Justiça

A história do Judiciário brasileiro tem uns capítulos de conteúdo um tanto bizarro. É suficiente lembrar, como ilustração, que na primeira composição do STF – Supremo Tribunal Federal, – não era exigida graduação jurídica dos magistrados. Bastava que o candidato exteriorizasse uma pose de cidadão íntegro e gozasse a reputação de conduta ilibada aos olhos do chefe da nação.

Esse veredicto de conduta ilibada e integridade de caráter, por se tratarem de avaliações um tanto subjetivas, privilegiava, como é fácil de imaginar, apenas os amigos e pessoas das relações de confiança do Presidente da República, quem, na verdade, decidia sobre as qualidades morais e méritos profissionais do novo juiz.

Dispensava-se o endosso de outra esfera do poder, como é praxe nos dias de hoje, que o Senado dá a palavra final à indicação do presidente. Não era uma prática das mais republicanas, embora a Suprema Corte tenha surgido já nos primeiros anos após a proclamação da República. Com tais critérios para escolha de Ministros, é justo imaginar que as decisões tomadas pelos supremos julgadores eram pautadas mais por interesses pessoais e preferências políticas. E até mesmo condicionadas pela limitação intelectual do ministro, e não por qualquer ordenamento jurídico que, nesse contexto, não precisava nem ser conhecido.

Surpreende saber que o Brasil viveu essa realidade há pouco mais de um século? Não para quem já leu alguma coisa sobre a evolução histórica da sociedade brasileira. O que é espantoso é perceber que essa mentalidade, na essência, não mudou muito até os dias de hoje, apesar dos discursos bonitos de imparcialidade, de submissão à letra da Lei, tão ao gosto das autoridades brasileiras.

É a permanência desse juízo de origem feudal que levou um juiz a processar uma escritora por ela ter cometido o crime de – vejam só, – escrever um livro. Quem poderia tolerar a ousadia de uma escritora que se atreve a escrever um livro? Pois foi o que aconteceu com Saíle Bárbara Barreto, catarinense com formação jurídica que, além de escritora, exerce o ofício de advogada.

Dizem alguns teóricos que o escritor deve escrever sobre aquilo de que conhece melhor. E o que uma advogada conheceria melhor do que o ambiente dos Fóruns, das Comarcas? Como o próprio título já anuncia, o livro Causos da Comarca de São Barnabé, é uma crônica muito bem humorada sobre o dia a dia de uma Comarca. E se os nomes do município, São Barnabé, e do estado, Santa Ignorância, são fictícios, frutos da criatividade da autora, é porque as descrições servem perfeitamente para qualquer jurisdição do Brasil.

O autor do processo a que a escritora responde na Justiça é um juiz, que se sentiu o muso inspirador de um dos personagens e achou por bem proibir a circulação da obra. Essa atitude só demonstra o nível de egocentrismo e visão autocentrada de Sua Excelência, pois uma pessoa com o mínimo de conhecimento dos meandros do Poder Público brasileiro reconhece facilmente os personagens da obra, eles estão em todo o lugar onde existe hierarquia de poder.

Está lá o juiz cheio de empáfia, de capacidade intelectual limitada, que confunde autoridade com sabedoria, vontade pessoal com interesse público. Enfim, essa concepção patrimonialista que afetou o serviço público lá nos primórdios da História do Brasil e da qual não conseguimos nos livrar até hoje.

Acrescente-se ainda que o ponto alto da narrativa é o humor com que a autora descreve o cotidiano da comarca fictícia, as intrigas, as implicâncias geradas pela inveja, as disputas pelos cargos de comissão, tudo o que se encontra em qualquer repartição pública, não somente do Poder Judiciário.

O retrato mais contundente dos personagens talvez seja o de Marinalva, a mais perfeita personificação do funcionário público, o mais patético idólatra dos mantras da classe média, essa parcela da população que mede os índices de felicidade pelo poder de consumo. A referida personagem exerce cargo comissionado, adere a um padrão de vida que não consegue manter sem a bendita comissão, depois precisa se submeter às mais degradantes humilhações, suportar um regime de quase escravidão para não perder o cargo.

Em resumo, é muito fácil identificar um personagem desses, basta ser brasileiro e ter por perto uma criatura dessas que vive no setor público correndo atrás de indicações comissionadas.

O que entristece nesse caso da escritora processada é o fato de saber que os desvios de conduta e as pequenas corrupções que corroem as estruturas da sociedade incomodam menos do que a denúncia delas. No final da obra, para quem acredita na justiça divina, a autora deixa um voto de confiança no recurso das forças celestiais para reorganizar o caos promovido pela arrogância e pela estupidez daqueles que se acham sempre acima da lei, mesmo sendo um juiz.

Mas, para aqueles que preferem ver a punição das patifarias aqui na terra mesmo, esse apelo soa como mais uma ironia. Uma insinuação de que a justiça dos homens, pelo menos de alguns homens, é mera ficção, surgida na cabeça de escritores, e só existe nos livros, com a qual não se pode contar nunca.

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