Cartão de visitas da Era Digital

Tem muita gente que não consegue acompanhar o movimento da História. Insiste em se apegar a práticas não mais legitimadas pelas mentalidades modernas. Por exemplo: coisa de trinta anos atrás, a gente ainda mantinha alguns resquícios de vida contemplativa. Embora as pessoas vivessem menos, as coisas duravam mais, as atividades seguiam um fluxo comum, como um rio em temporada de clima normal. Não. Não se trata de nenhum saudosismo anacrônico, nem sonho de voltar aos costumes dos ascetas, lunáticos que se entocavam nas cavernas e se dedicavam a meditar sobre os segredos da vida.

Retornemos logo ali, a um passado bem recente, os tempos pré-digitais, quando as comunicações não tinham esse caráter instantâneo de hoje, quando uma pessoa envia uma mensagem, e já prega o olho na tela do celular, se a resposta não chega em três minutos, enfurece, tomada pela impaciência.

Havia uma boa dose de romantismo no ato de enviar uma carta bem melosa, cheia de bons sentimentos, ou de insinuações maliciosas se fosse uma intenção de namoro, a uma pessoa querida e amargar duas ou três semanas na expectativa de um aceno positivo. Um sinal de que a porta estaria aberta para uma boa acolhida. Nessa época, a gente nem fantasiava de um dia poder gozar as possibilidades eróticas da era digital. As pulsações da carne precisavam de um contato mais direto entre os envolvidos. Até uma certa burocracia, isso para quem costuma resolver seus problemas de uma maneira minimamente civilizada.

Imagine-se o caso dos nudes. Prática tão comum hoje nas redes sociais. Espaço virtual onde a imagem da pessoa desejada pode ser acessada a qualquer momento. Aqueles inaptos para as sutilezas da conquista que permite a intimidade; aqueles que não atingiram a maturidade necessária para saborear o gosto masoquista da espera, esses já vão logo se desnudando e tentando satisfazer o apetite de imediato, como quem toma um analgésico em situação de grande dor. São os nossos hábitos contemporâneos.

Agora lembre daquela sociedade sem celular e sem internet. Mentalize um desses sujeitos mais acostumados a engolir do que a degustar; que tem mais estômago do que paladar; mais fome do que desejo. Ele conhece uma mulher linda. Como não tem poder de sedução, apela logo para o abate, na esperança de que a vítima seja tão frágil quanto ele mesmo, e não ofereça nenhuma resistência.

Porém, ele não tem acesso direto a essa musa encantadora, precisa chegar até ela com os recursos que a natureza lhe deu. Digamos que esse Romeu avistou sua Julieta pela primeira vez num bar, mas ela, cercada de amigos, não deixou oportunidade de assédio. Ele, desesperado por uma lascívia incontrolável, se apegou ao garçom, deu uma gorjeta para ele conseguir o nome da moça. Quando ela se retirou, pagou a conta com cheque, aquele objeto antigo que as pessoas usavam para saldar dívidas, e eis que ele descobriu o nome da amada, que podia até ser Julieta, mesmo.

Para conseguir endereço, telefone, seria necessário outro suborno ao funcionário desonesto, poderia tentar isso sozinho. Consultou a lista de assinantes, outro utensílio muito valioso naquela fase analógica. Entrou numa uma cabine telefônica, chegou até a ligar, mas ninguém atendeu. Aí lançou mão de um método que lhe pareceu bem ousado e criativo. Foi a uma loja, comprou a câmera fotográfica mais barata que encontrou.

Em casa, tirou a roupa, deitou, e com a ajuda de uma revista pornográfica, excitou-se o suficiente para pôr em evidência o único dote que tinha a oferecer. Mas, não podia desperdiçar um filme com uma única pose, então enquadrou as árvores vistas através da janela, um cachorro virando o lixo da rua, um passarinho pousado num muro. Uma semana após o primeiro clic, levou para revelar, mais três dias teve, finalmente, sob a vista, a imagem que tanto o enchia de orgulho, e que ela certamente iria aceitar como um cartão de visitas.

Envelopou o autorretrato com uma dedicatória no verso, “de um admirador que te viu num bar e não pensou mais noutra coisa”. Postou no correio e só faltou virar monge budista como técnica para controlar a angústia. Alguns dias depois, ligou para o mesmo número, de novo ninguém atendeu. Três ou quatro semanas mais tarde, viu o carteiro se aproximar, precipitou-se rua afora, ver se tinha uma resposta, avistou o próprio envelope com a notificação MUDOU-SE. Passou no bar, procurou o mesmo servidor, a moça numa mais fora vista por lá.

Transcorreu um mês desde a primeira vista até a devolução da correspondência. Nesse ínterim, ele viveu uma intensa paixão, com cenas de indescritível erotismo antes de voltar a enfrentar o abismo da própria solidão. Pode-se dizer que nesse período ele foi feliz. Hoje, com a internet e o celular, tudo perdeu a graça. Até as frustrações são mais instantâneas.

Foto de Julio Tirado na Unsplash