Sobrevivente do genocídio

A temperatura lá fora era amena, um início de tarde ensolarada, que convidava a sair para a rua. Normalmente, após o almoço, eu pratico o exercício mais saudável e prazeroso que existe: a sesta. Ainda mais depois que me aposentei, em maio de 2020, tempos que nos obrigam a permanecer trancados em casa por causa da pandemia. Mas aquela sexta-feira, 16 de abril, eu tinha um motivo especial para correr o risco de sair para a rua. Era a minha vez de tomar a vacina contra a maldita Covid19. Como todo indivíduo de juízo normal eu sonho recuperar a esperança de um futuro que oxalá não esteja muito longe, o de voltar a uma vida normal. Andar na rua sem medo de acabar num hospital, entubado já é um ganho bastante considerável para uma simples fisgada no músculo do braço.

Após um ano e um mês praticamente sem botar o pé fora da porta, salvo raras vezes por necessidades inadiáveis, eu me mantive obediente às recomendações de isolamento, acompanhando o desenrolar dos fatos quase que só pela televisão e por jornais. Ou pela janela, essa abertura que nos permite contemplar o mundo exterior sem poder alcançá-lo. Por isso a experiência de me ver fora dos limites do meu apartamento, em busca da tão sonhada dose de imunização, teve o gosto que deve ter para um presidiário os primeiros passos em liberdade.

As ruas tão conhecidas, por onde caminho há vários anos, pareceram agora uma cidade estranha. É verdade que há algo diferente. O movimento, tanto de automóveis quanto de pedestres, é bem menor para um dia de semana normal. E ver aquele desfile de máscaras é também um detalhe meio constrangedor, pois o rosto é o primeiro sinal evidente da personalidade que a gente observa em qualquer pessoa, a identidade dela, é o que faz o ser humano transcender a condição de mero número. Mas, diante da tragédia que vivemos, é justamente os irresponsáveis que desafiam as recomendações cientificas e se aventuram pelas vias públicas com a face descoberta, boca e nariz expostos à invasão do vírus assassino, que deveriam causar espanto. O que era normal antes se tornou condenável agora.

Cheguei ao estacionamento da PUC, onde funciona o serviço de drive-thru, e me senti como um turista na recepção de um hotel, tão eficaz e atencioso era o atendimento dos vários funcionários envolvidos na operação, desde militares para organizar o trânsito, as recepcionistas para fazer um breve questionário e dar informações precisas e necessárias para o vacinado de primeira dose. Até que cheguei à tão esperada picada. Uns dez metros antes, já havia dobrado a manga da camisa para não correr o risco de atrasar, nem mesmo alguns segundos, aquele momento que já estava previamente carregado de efeitos mágicos. Uma vacina. A garantia de que a gente vai continuar tocando a vida, essa vida que, parodiando Gonzaguinha, podia ser bem melhor, mas isso não impede que a gente rejeite qualquer tentativa de quem quiser torná-la ainda mais difícil.

É claro que esse sentimento de alívio se justifica pelas enormes incertezas pelas quais passamos desde o começo da pandemia quanto à possibilidade de proteção contra essa calamidade que se espalhou pelo mundo inteiro no ano passado. Como diz o velho ditado, uma desgraça nunca vem sozinha, e, no nosso caso, ainda somos vítimas de um governo negacionista da ciência e de tudo o que significa alegria de viver. Com uma mentalidade dessas, a administração da Saúde Pública foi marcada, nesse período nefasto, por omissões criminosas quanto à aquisição de vacina, e por incompetência desastrosa de todo o sistema de saúde. O resultado foi um enorme desespero coletivo por ver, diariamente, nos noticiários, os hospitais lotados, os cadáveres se amontoando nos corredores, os cemitérios incapazes de atender a uma demanda tão intensa. E as autoridades negando tudo isso, como se o povo não passasse de uma turma de crianças ingênuas a quem se responde qualquer coisa para se livrar de perguntas incômodas. Chegando a esse ponto, nosso maior desejo consistia em sobreviver, não só dessa doença, mas também do descaso das mentes genocidas a quem nossas vidas estão submetidas. E alguns estão conseguindo.

A moça que me aplicou a injeção salvadora avisou que eu poderia ter alguns efeitos colaterais desagradáveis nas próximas horas, mas eu nem prestei atenção nos possíveis males que ela listou. O que é uma dor de cabeça diante da certeza de continuar vivo? Voltei para casa como quem regressa, salvo, após escapar de um campo de extermínio. Era um novo homem. Mas a noite, quando me preparava para ir dormir, o aviso da agente de saúde começou a se materializar. Não só a cabeça, mas o corpo todo começou a doer, propiciando-me uma noite de sono intranquilo, normalizado com algumas doses periódicas de analgésico. Foi ruim, mas provisório, sumiu sem deixar marcas, um preço até barato para a tranquilidade almejada para um futuro imediato.

Noventa dias depois tomei a segunda dose que garante a eficácia completa da vacina e comecei a me preparar para retomar assuntos adiados há mais de ano. Não houve aquela aura quase mística da primeira vez, mas a sensação de sobrevivente de um genocídio que já levou mais de quinhentas e cinquenta mil vidas é algo que não se vive todos os dias.

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