Guerra e paz na política

Na década de 30 do século 20, surgem, pela primeira vez na história do Brasil, os movimentos nacionais de orientação ideológica. Até então, as campanhas eleitorais se resumiam a arranjos políticos entre grupos rivais na disputa pelo poder. Nesse novo contexto, os integralistas, inspirados no fascismo europeu, rivalizavam com as facções de esquerda, orientadas pelos comunistas. Habilidoso, Getúlio Vargas soube tirar proveito disso. Mestre na arte do oportunismo, Getúlio jogou os extremos um contra o outro, numa campanha bem sucedida de descrédito da atividade política. Era o caminho para legitimar o golpe de Estado e implantação de uma das muitas ditaduras que condenaram o Brasil ao caos social que perdura até hoje.

Não é preciso ser um cientista em alguma área social para perceber o quanto a estratégia de Getúlio foi eficaz. Um dos discursos mais comuns em épocas de campanhas eleitorais é a desqualificação da atividade política. Seja pelas denúncias de corrupção, seja pela suposta ineficiência dos políticos, ou, a mais recente delas, a disseminação do ódio entre os brasileiros por parte daqueles que almejam um cargo na esfera do poder. Esse discurso procura induzir a ideia de que administrar os bens públicos é uma tarefa que depende exclusivamente de conhecimento técnico, ou para usar uma palavra que já virou moda nesta campanha, de meritocracia. Esquecem as almas bem intencionadas que repetem essa ladainha, de que, além de gerenciar os bens públicos, o exercício da política consiste muito mais na administração de conflitos de interesses. A negociação para harmonizar tais reivindicações depende muito da disposição em abordá-los na complexidade do contexto social em que estão inseridos. Portanto, não existe debate político sem a defesa acalorada de pontos de vista, porque o que está em jogo, no final das contas, é isso: pontos de vista que orientam as decisões administrativas. Por isso a discussão, o confronto entre argumentos é tão importante num processo que se queira democrático.

O problema é que aquelas pessoas que historicamente se encontram em situação privilegiada não gostam muito de ver suas regalias ameaçadas. Elas preferem acreditar que democracia é esse estado apático em que cada indivíduo apresenta sua fala e volta pro seu canto, quietinho, e aguarda, bem educadinho, a manifestação do adversário. Criou-se no Brasil a ideia de que para o exercício da democracia é suficiente que cada indivíduo tenha o direito de falar o que bem entende, sem ser molestado por isso. Essa liberdade é essencial, mas, se não vier acompanhada de outros direitos, é apenas permissividade. A verdadeira realização da democracia só acontece quando todos os cidadãos, ou pelo menos o maior número possível, têm acesso às decisões que vão influenciar concretamente a vida de todos. E para conquistar de fato esse direito é necessário que se conteste com muita convicção os privilégios daquelas pessoas que se acham detentoras de direitos sagrados e intocáveis. Trata-se, portanto, de um confronto com vistas a uma revisão na estrutura social, não um colóquio entre compadres, nem uma reunião dominical de familiares.

Quanto maior é o nível de consciência de uma comunidade a respeito dos interesses que estão em jogo nas disputas pelo poder, mais tranquila será a administração desses interesses. Desqualificar o debate é a maneira mais reacionária de negar a existência dos interesses em jogo. Ao passo que o acaloramento nas discussões mostra apenas que os interesses de vários indivíduos estão sendo considerados como legítimos e respeitados.  Por isso, quando um candidato a cargo público precisa se apresentar como um sujeito bonachão, avesso a brigas, detentor de uma honestidade cujo maior mérito é de ter sido ensinada pela mãe, percebe-se a enorme eficácia da estratégia de Getúlio Vargas.

 

Ademir Furtado

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