Infanticídio

Imagem de ilustração: Isolde Bosack

Era uma vez um menino, que morava numa linda casa. No pátio, muito grande, erguia-se um arvoredo cheio de flores, onde pássaros voavam e cantavam o dia inteiro, entre as ramagens; e também encontravam-se muitos bichos de estimação. Numa das brincadeiras, o guri atirou o pau no gato que dormia estirado ao sol. O bichano deu um pinote e um berro, e saiu correndo, escorraçado. Dona Chica, a babá, que espiava o garoto pela janela, admirou-se muito com o berro que o gato deu. Mas não gostou da traquinagem, por isso chamou o boi da cara preta pra assustar o malvadinho. Mas o pirralho já se sentia um homenzinho e não tinha medo de careta, disse um verso bem feio, disse tchau e foi-se embora, pirracear noutro lugar. Transpôs um aramado e entrou num imenso quintal, onde verdejavam muitas árvores frutíferas. Ele se encheu de alegria ao ver tanta laranja madura, tanto limão pelo chão. Comeu um monte de fruta e criou um barrigão enorme. Teve que se deitar um pouco pra descansar. Atirado no chão, com aquela barriga grande, parecia um sapo. Então, por pura vadiagem, imaginou que seria engraçado sapejar até numa lagoa que existia ali perto, porque lá morava um sapo de verdade. Numa das margens, encontrou uma canoa, e resolveu entrar. Mas ele havia comido demais, estava muito gordo e a canoa virou, e tornou a virar, por causa do gordinho que não pode remar. Bem que nessa hora ele queria ser um peixinho que soubesse nadar. Nesse momento apareceu novamente a dona Chica, que entrou na lagoa, pegou o brejeiro pelo fundilho das calças e tirou pra fora. O peralta ficou ali jogado na grama, parecia um boneco de pano, todo encharcado. Não respirava, não se mexia. Dona Chica corria pra lá, corria pra cá, feito uma barata tonta, não sabia o que fazer. Mas o diabinho só era pequeno no tamanho, porque sabia fazer troça que nem gente grande, e caçoava de todo mundo como se fosse adulto. Pois tudo não passava de burla do pequeno. De repente, ele deu um salto, saiu correndo, dando cambalhota, e pulando num pé só, que nem um Saci Pererê, e cantando assim: “o sapo não lava o pé, não lava porque não qué”. Dona Chica, desta vez, não se admirou, pois já conhecia as fanfarronadas do bandalho, que se juntou a outros desocupados, e foram todos cirandar.
E assim, muitos anos se passaram. Em qualquer lugar vivia uma criança feliz, feliz a cantar, alegre a embalar seu sonho infantil. Até que lá pelos anos de mil novecentos e setenta, no reino vizinho, onde o rei era muito poderoso, uma lei decretou que não basta agir corretamente, com honestidade, e só fazer o bem para os outros. É preciso ter o coração cheio de boas intenções. Não só o coração, mas a boca também. Quer dizer, deve-se falar sempre coisas bonitas, de maneira a não agredir ninguém, nem mesmo os bichinhos que dormem ao sol. Acreditando piamente que as coisas se transformam com um abracadabra, decidiu-se mudar o mundo usando uma estratégia bem simples, e ao alcance do todos: trocar as palavras usadas para se falar sobre o mundo. E assim, com esse procedimento mágico, o admirável mundo novo se tornou possível. Basta dizer que a vida é bela, e pronto, fez-se a Beleza.
Mais alguns anos depois, num outro reino não muito distante, chamado Brasil, anunciou-se a boa nova. E os habitantes deste país do futuro, crentes de que o que é bom para os súditos do outro reino é melhor ainda para os brasileiros, trataram de pintar de cor-de-rosa o que antes era apenas verde-amarelo.
E na firme convicção de que o mal deve ser arrancado pela raiz, os brasileiros correram para as escolas, a fim de plantar nos corações inocentes dos infantes as sementes de um mundo perfeito. Fazia-se necessário ensinar aos anjinhos que Papai e Mamãe do Céu não gostam que uma criança ofenda os outros, maltrate a Natureza ou machuque os animais. E para pôr em prática esses ensinamentos sublimes encasquetaram com a modificação das atividades lúdicas na hora do recreio. Desde então, a petizada não atira mais o pau no gato, porque isso não se faz, o gatinho é nosso amigo, não devemos maltratar os animais. E nunca mais se pode afligir a cabra-cega, pois se há uma coisa muito terrível é um desnaturado debochar e maltratar uma pobre cabra portadora de deficiência visual.
É claro que essa nova filosofia de vida trouxe coisas positivas. Por exemplo, o cravo não brigou mais com a rosa, nem debaixo de uma sacada e nem em lugar nenhum, por medo de parecer um machistinha intransigente. Ao contrário. Como acontece nas comédias românticas vindas do reino poderoso, ele viu o quanto estava sendo bobo em não querer dialogar com a coitada da rosa, que se espedaçava toda na tentativa de fazê-lo entender as coisas. E aqueles guerreiros que se atracavam em combate com outros guerreiros e faziam zig zig zá, agora estão celebrando um eterno acordo de paz, e comemorando o novo estado de espírito, de harmonia e entendimento. Seu inimigo comum, doravante, são aquelas criaturas rabugentas, que cultivam o péssimo hábito de ter idéias diferentes das outras sobre as maneiras de se comportar em sociedade. E para inaugurar a parceria inventaram de ir falar com Jó, para que ele libertasse seus pobres escravos, e deixasse que fossem jogar caxangá onde bem entendessem, pois no mundo que almejavam não se permitiria algo tão horrendo como a escravidão.
Por isso que hoje, em algumas escolas do reino dos brasileiros, os professores vivem tão felizes, pois seus pupilos, na hora do recreio, brincam todos em completa união, sem ofender os portadores de excesso de peso, nem os descendentes de outras etnias, e principalmente, sem zombar daqueles meninos que, por alguma característica de personalidade ainda não identificada, se divertem mais com os brinquedos das meninas.
Com tudo isso, quem deve andar entediada é a dona Chica, coitada. Com uns pimpolhos tão bem comportados, nem carece mais ela se preocupar, não tem mais necessidade de correr atrás do desavergonhado. Ela deposita muita fé no bom Jesus que, junto com os poderosos do outro reino, a todos conduz, e está olhando as crianças do nosso Brasil.

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