Longe do temor servil

A determinação de estudar e entender o Brasil me conduz a leituras dos mais variados tipos, sempre orientadas pela curiosidade. Foi assim que tomei conhecimento do livro Brava Gente Brasileira, de Márcio Moreira Alves. Para começar, é bom esclarecer que a obra não tem nada a ver com a série homônima da Globo, levada ao ar alguns anos atrás. Trata-se de uma coleção de crônicas publicadas no jornal O Globo nos anos 2000-2001, e que poderia ter como subtítulo o nome de um dos capítulos: o Brasil que funciona.  Mas o autor passa longe da ingenuidade ufanista que ainda sobrevive em algumas mentalidades.

Para quem não sabe, Márcio Moreira Alves foi o pivô de uma das maiores atrocidades da História do Brasil dos últimos tempos: o AI-5. Na verdade, o famigerado dispositivo já estava pronto, e os generais só aguardavam um pretexto para tirá-lo da gaveta.  E a alegação que faltava surgiu com um discurso do então jovem deputado, onde os militares eram apontados como responsáveis por atos de abuso de poder e corrupção, que, aliás, todos conheciam, mas ninguém possuía a coragem necessária para denunciar. Jovem mas não ingênuo, o parlamentar encerrou o pronunciamento e saiu da tribuna direto para o exílio no exterior, pois sabia o futuro que lhe aguardava, caso permanecesse no país.

Voltou dozes anos mais tarde e decidiu conhecer o Brasil. Então, embrenhou-se Brasil adentro a procurar programas sociais destinados a melhorias das condições de vida dos brasileiros. Era o momento propício para essa busca, pois a nação começava a despertar do sono a que foi submetida por mais de vinte anos, e a reconstrução da cidadania tornou-se o primeiro item da pauta de reivindicações sociais. E em cada canto dessa imensidão territorial, e em cada aspecto da diversidade cultural, um problema particular e um desejo comum: sobreviver da maneira mais digna possível.

E nessa radiografia cultural do território brasileiro detectou alguns sintomas importantes. A maioria das iniciativas que apresentaram resultados elogiáveis no âmbito microssocial é de empresas privadas, organizações não governamentais, ou algum idealista que dedica tempo e experiência em benefício da comunidade. Nesses casos, o trabalho é resultado de uma dedicação particular ao bem estar coletivo, baseada na convicção de que o social é mais importante que o individual. As propostas oriundas de órgãos governamentais, ou emperram no peso da burocracia, ou se desviam por caminhos diversos.

Essas constatações contrariam certas crenças, da época e de hoje, que confundem aumento de renda com desenvolvimento social. Ainda há pessoas pelo Brasil afora convictas de que de nada serve um salário maior sem uma infraestrutura adequada para que esse novo padrão de vida seja efetivamente aproveitado.

As causas que impedem alguns programas oficiais de dar resultados são conhecidas de todo mundo. E um dos méritos do livro é não cair na simplificação moralista de atribuir a ineficiência do poder público à falta de caráter das pessoas que o exercem. Uma pausa para reflexão sobre o tema e conclui-se que a questão é mais profunda. Os desvios de conduta de administradores públicos não são resultado de incapacidade moral, e sim o sintoma de uma estrutura de poder autoimune e autoindulgente, mais ocupada em justificar os erros do que trabalhar pelos acertos.

Profissional do jornalismo antes de se tornar deputado, o autor sabe disso, embora não diga exatamente com essas mesmas palavras. O importante é ter feito um trabalho que apresenta outra visão dos problemas nacionais, e sugerir soluções que levam em conta as peculiaridades de cada situação. Uma abordagem muitas vezes otimista, mas sem descambar para o ufanismo irresponsável que já orientou tantos desatinos nacionais. E sem o temor de desagradar amigos ou partidários.

1 Comentário

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    Carlos Eduardo da Silva Cardoso Postado 13 de fevereiro de 2014 19:34

    Meu muito conspícuo colega,

    nesse período que ora trancorre, me surgiu a oportunidade de ler dois livros imperdíveis de Palmério Dória, também jornalista, que merece esse epíteto não só pelo texto agradável, mas pelo compromisso com os fatos (o que indica que alguns, a despeito de exercerem tal profissão, não merecem a designação), em um dos quais (“O Príncipe da Privataria”, a respeito de um pústula chamado Fernando Henrique Cardoso) o Márcio Moreira Alves é citado exatamente como exemplo de coragem. Um homem público como deveriam ser todos que se propõem, como homens públicos, a ter como missão ressaltar os interesses do povo e não a usar tal proposta como alavanca para ressaltar seus próprios interesses. Vou atrás desse livro. Obrigado pela indicação.

    Abraço.

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