Manifesto Virulento de 2020

Um novo espectro paira sobre o mundo, o espectro de um vírus. Como a maior parte das bugigangas do comércio popular, ele veio da China. Há quem diga, até, que foi criado em terras chinesas de propósito, e lançado ao mundo com o intuito bem definido de destruir a economia dos outros países para que a China comunista, enfim, lidere o mundo.

Essa teoria não esclarece por que o bichinho assassino começou o estrago pelos próprios conterrâneos, pois, como se vê diariamente nos noticiários, os chineses foram os primeiros a sofrerem a destruição viral. Ah, isso foi só para disfarçar, dizem os adeptos das conspirações mirabolantes. Gente confinada em casa é atacada por ideias estranhas.

Outros afirmam que a origem de tamanha calamidade não foi proposital, mas uma consequência dos hábitos alimentares dos chineses que, como se sabe, comem de tudo, até produtos do MacDonalds, ainda mais cobras e lagartos. Pois o micro exterminador do presente teria saído de uma dessas iguarias, pulado de prato em prato, até chegar a Milão, na Itália, onde, de início, teria se distraído um pouco, contemplando as vitrines da galeria Vittorio Emanuelle, encantado com os últimos lançamentos da moda ocidental, muitos deles, aliás, made in China. Depois, escandalizado com a futilidade do consumismo capitalista, teria se decidido por tudo explodir.

Essa explicação se liga a outra, aquela de que tudo é resultado de um castigo de Deus, pela devassidão da humanidade, tipo novo dilúvio, Sodoma e Gomorra. A causa da ira divina, desta vez, teria sido o vídeo do grupo Porta dos Fundos, só não ficou muito claro por que a punição teve início justamente pela China e não pelo Rio de Janeiro. Pode-se especular que o Todo Poderoso teve um ato de consideração à estátua do filho que está plantada lá em cima do Corcovado, e afinal de contas, os comunistas sempre são culpados de alguma coisa. Tudo pode ser, ainda mais que os desígnios de Deus são incompreensíveis aos homens e mulheres, sobretudo àqueles e àquelas que permanecem de quarentena por muito tempo.

Mas o que importa mesmo é que, qualquer que tenha sido o embrião do monstrinho, a terra finalmente parou. Não numa ficção distópica do cinema, nem na música do Raul Seixas. Agora chegou o real dia em que a terra parou. O aluno não foi para a escola porque sabia que o professor também não estava lá; o empregado também não foi para o trabalho porque, com certeza, o patrão também não estava lá. O que o empregado talvez não atinasse é que o patrão se continha dentro de casa, mas, ao contrário da maioria dos seres humanos, que aproveitavam o período de folga compulsória para dormir, ver televisão, jogar paciência, o patrão praguejava, furioso, babando de raiva, não contra o vírus, é claro, mas contra as determinações de confinamento que impediam seus subordinados de irem trabalhar.

Dos terraços de suas coberturas na Bela Vista, no Leblon, em Pinheiros, eles lançavam impropérios contra as medidas sanitárias e conclamaram seus assalariados a reagirem, ameaçando-os de morte ainda mais terrível do que a provocada pelo vírus, a da fome. Eles não especificaram qual a diferença, para quem morre, da causa da morte, mas gritaram tanto que foram ouvidos pelos seus pares nas coberturas vizinhas. Daí criou-se uma corrente de comunicação de um terraço a outro, até que decidiram se encontrar na rua e protestar contra a paralisação do país. Mas, para não correrem o risco de contato com possíveis infectados, combinaram de realizar o encontro de carro. Uma carreata. Foi lindo de ver a rua, pouco antes vazia, de repente lotada por uma fila enorme de Mercedes, BMW’s, Porsches, Lamborghinis, todos expelindo sua revolta em buzinaços sincronizados, como numa sinfonia, muito diferente da balbúrdia dos arruaceiros naquelas manifestações populares por melhores salários ou direitos trabalhistas.

Quanto aos trabalhadores, por sua vez, aconteceu um fenômeno muito estranho. Talvez pelo feriado prolongado trancados em casa, assistindo novelas da Record, deram em acreditar que os problemas dos patrões eram igualmente seus, e passaram a gritar nas janelas também, que queriam voltar ao trabalho. Só que não era em coberturas, porque algumas casas nem cobertura tinham. A indignação se alastrou mais que o vírus quando assistiram ao Presidente da República, em rede nacional de televisão, esbravejar contra a preguiça dessa gente que morre de medo de uma gripezinha. O Brasil acima de tudo não pode parar por causa de um resfriadinho. Afinal, todos vamos morrer de qualquer maneira, e ao patriota é glorioso antecipar a natureza em prol de uma causa nobre, a salvação do seu país.

Tamanha é a índole patriótica dos humildes operários da nação, que não se deram conta de que são eles que movimentam tudo isso daí, que basta eles cruzarem os braços para os donos das BMW’s e dos Porsches não tenham nem gasolina para desfilarem seus egos pelas vias da cidade. E, já que existem alguns disparates de cunho religioso, dignos da doutrina do achismo sobre as origens divinas dessa pandemia, a gente poderia entrar nesse culto e gritar bem alto, em tom dissonante do coro dos crentes que, se esse vírus é uma praga enviada por alguma força superior, o objetivo é apenas para esvaziar as empresas, as fábricas, e mostrar que quem move o mundo é a força de trabalho. Talvez esse vírus tenha entrado nas indústrias apenas para dar um alerta do tipo, trabalhadores de todos os povos, sumi-vos.

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