Momentos Únicos

A aposentadoria é um dos momentos mais importantes de uma carreira, não porque a gente recebe sem trabalhar, mas porque encerra uma fase existencial e abre para outra, de horizontes menores ou maiores, depende apenas do ponto de vista. É um rito de passagem, e, como tal, só acontece uma vez na vida, por isso merece ser comemorado com um evento que seja excepcional. Como sou um enófilo convicto e praticante, não vejo nada mais adequado do que abrir um vinho com as mesmas características, algo de extraordinário, que deixasse essa conquista com um gosto inesquecível. E igualmente único, não por ser um produto raro, mas porque, devido ao preço, dificilmente vou tomar outro nos anos que me restam. Falo do Sassicaia, um ícone dos vinhos italianos, que atiça as fantasias consumistas dos beberrões mundo afora, pelo menos aqueles que alimentam pretensões de transformar o ato de beber numa experiência estética.

Mas beber vinho não é engolir um líquido aleatório, produzido com uvas, depositado numa taça. Os vinhos que merecem ser degustados carregam histórias que os tornam especiais. Assim como os bons indivíduos que vão se aperfeiçoando com o tempo, o produto de uma vinícola é o resultado de várias tentativas e ensaios, avanços, recuos, até chegar ao apogeu de uma experiência para oferecer ao apreciador uma boa dose de felicidade contida numa garrafa. Os vinhos especiais viram celebridades, por isso, tais como as pessoas célebres, seus dados biográficos são facilmente encontrados para quem quiser conhecê-los. Em várias publicações voltadas à enofilia, encontra-se a trajetória do vinho que escolhi. Era produzido na Itália, num canto da Toscana sem tradição vinícola, desde os anos 40 do século passado, como vinho artesanal, para consumo próprio, com um corte de Cabernet Sauvignon e Cabernet Franc, uma composição típica dos vinhos de Bordeaux. Aliás, segundo consta, as uvas vieram dos vinhedos de Lafite-Rothschild, o que já cria a expectativa de algo no nível da excelência. Mas, as severas regras de produção na Itália só permitiam, para a região toscana, vinhos com a cepa Sangiovese, por isso, o Sassicaia não gozava de prestígio maior do que um simples vino di távola, a condição mais baixa de um vinho italiano, um carrascão consumido a preço baixo, por um público de paladar pouco exigente. Pouco mais tarde, assim como um indivíduo que deseja subir na vida, o Sassicaia passou por alguma inovação, mas foi só nos anos setenta e oitenta, com a reforma das leis de produção de vinho, quando então se permitiu o cultivo de outras uvas consideradas estrangeiras, que o Sassicaia foi descoberto na sua verdadeira essência e despontou como um ícone, não só da Toscana, mas da própria Itália. Admitido oficialmente, foi também descoberto pela imprensa especializada, que lhe atribuiu o rótulo pelo qual são considerados até hoje os vinhos produzidos com a mesma proposta, os ‘supertoscanos’. Então, essa preciosidade mostrou todo o seu potencial de sedução, conquistou o mundo e, naturalmente, subiu de preço. O produtor se chama Tenuta San Guido, e no site da vinícola, lê-se que é uma homenagem a San Guido de Gherardesca, um monge medieval que viveu em Pisa. Para os crentes católicos e adeptos da hagiografia, o que não é o meu caso, um motivo a mais para degustar um vinho digno de santidade.

Conhecedor disso e apreciador de uma boa história, poucos anos atrás, quando estive na Itália, decidi que esse seria o vinho aberto para comemorar minha aposentadoria. Tratando-se de dois momentos únicos de minha vida, vividos em um só, achei que lamentar o sacrifício financeiro não seria uma atitude digna, nem do estado de espírito nem do vinho.

E chegou o momento mais esperado: a degustação. Os manuais do bom bebedor recomendam que alguns vinhos devem ser abertos com uma ou duas horas de antecedência, colocados em decanter para respirar. Eu, como aprendiz obediente, segui as instruções. Bastou verter o líquido no novo recipiente para que um aroma gostoso de frutas e flores impregnasse a sala. Foi o bastante para aguçar o paladar e difícil esperar duas horas para provar a prometida maravilha. E veio o primeiro gole, o segundo. Outro alerta dos especialistas é que os grandes vinhos vão apresentando aos poucos o seu enorme potencial de proporcionar prazer. Isso, naturalmente, não acontece com toda beberagem engarrafada com rótulo de vinho fino, o que elimina antecipadamente a suspeita de que, depois da segunda taça, qualquer bebida com álcool nos eleva às esferas mais altas do prazer. Um bom vinho é como uma pessoa interessante, nos primeiros contatos a relação permanece na superfície dos ritos de sociabilidade, mas com o tempo, vai-se descobrindo as potencialidades intelectuais, culturais, afetivas e eis que surge uma grande afinidade, uma amizade sólida, que proporciona momentos de grandes alegrias. O fato é que foi uma experiência extremamente prazerosa, tanto o ritual de passagem, a aposentadoria, quanto seu correspondente lúdico, a degustação. Se eu dependesse de momentos ritualísticos para me permitir um mimo dessa natureza, seria o caso até de voltar a trabalhar, só para poder me aposentar de novo. Mas não é saudável se prender a experiências antigas, mesmo as agradáveis, e as repetir, como uma representação teatral. Ainda há muitas passagens para transpor e muitos vinhos diferentes para degustar.

Photo by Ergita Sela on Unsplash

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