Não ao negacionismo!

A negação, como categoria gramatical, não passa de um advérbio, aquela partícula que altera o valor do verbo. Mas, quando o verbo é conhecer, a negativa enfática, obstinada, degenera em uma patologia que assombra a humanidade desde sempre. Não por acaso, a maior vítima dos negacionistas é a ciência. Basta um cientista sugerir uma nova interpretação, um simples ponto de vista novo sobre verdades já consolidadas, eis o exército dos negacionistas armados de todos os preconceitos, superstições e crendices, alimentados há séculos, para combater as possíveis novidades.

O negacionista é antes de tudo um conservador. Mecanismo de defesa contra as inconstâncias da realidade? Uma maneira de se agarrar ao já conhecido, sem precisar abrir a mente para novas expectativas? Foi assim na refrega entre o heliocentrismo e o geocentrismo, em que as mentalidades apegadas ao mito antigo de que o sol girava em torno da terra, não se conformavam e não podiam aceitar que não eram mais o centro do universo, afinal, o cosmos e a humanidade eram obras de um deus todo poderoso, um velhinho bondoso que cuidava de todo mundo lá de cima das nuvens. Uma heresia inconcebível alterar a dinâmica da criação de um ser tão magnânimo. E se uma mente iluminada aparecesse com ideias heréticas de que a vida no nosso planeta poderia ter outras origens e arranjos diferentes, melhor jogá-la na fogueira do que deixá-la incendiar a paz dos inocentes.

A luz muito forte das almas curiosas maltratava os olhos de quem vivia cego pelas ‘certezas absolutas’. A ciência, que nunca demonstrou nem se interessou pela existência de uma entidade abstrata, criadora e controladora de tudo, por outro lado, apresentou teses, teorias, experimentos, suposições, todo tipo de evidência com força para convencer os crentes nos antigos mitos, ou ao menos convidá-los a uma reflexão mais consistente, mas de que servem as provas diante da fé inquestionável?

Mudam os tempos, avançam os estudos, novos mundos são descobertos, mas o conflito entre visão progressista e obscurantismo continua o mesmo. As dúvidas sobre a esfericidade do planeta terra é uma dessas últimas viroses que atacaram o cérebro de uma multidão mundo afora, a ponto de se realizarem expedições até os supostos limites do planeta para provar que a terra é plana. Mas essa sandice pode ser catalogada como curiosidade folclórica porque não apresenta maiores riscos, a não ser o de cair no ridículo para os próprios adeptos.

Mas nem sempre tais estripulias se mantém no nível da piada. Atualmente, o campo de batalha onde se digladiam as fanfarronadas dos dissidentes de tudo e os seguidores da ciência, é a Covid-19. Por motivos que ainda escapam à plena compreensão, há uma legião de seres que se recusam a admitir a existência de uma pandemia mortal, cujo poder de letalidade não diferencia nem posição social, nem etnia, tipos de comportamento moral. Pode-se dizer que é a doença mais democrática de que se tem notícia nos últimos tempos. O cúmulo do non sense foi atingido quando essa trupe de lunáticos passou a divulgar a ideia de que o corona vírus não passava de uma invenção da mídia para prejudicar o governo.

Mais problemático do que o próprio fenômeno é quando essa refutação simplória recorre a formulações retóricas totalmente fora de contexto para burlar as regras de isolamento. Liberdade de expressão, direito de escolha, autonomia para de ir e vir, conceitos que em tempos normais se traduzem por direitos sagrados de qualquer cidadão, se metamorfoseiam em anteparo para o diálogo para as mentes mais refratárias. Não vale a pena nem discursar sobre esses argumentos, de tão estapafúrdios que são. Basta ressaltar que nesse caso, o direito de um indivíduo de andar na rua sem os devidos cuidados põe em risco a vida de várias outras pessoas, e esse perigo, portanto, revoga o direito individual. Mas explicar isso para aqueles que não conseguem se afastar de suas certezas é como dar um copo d’água para curar um paciente com câncer.

Claro está que o negacionismo tem muito de ignorância, mas não é só isso. O detalhe mais evidente e perturbador dessa cegueira é que ela está relacionada às fantasmagorias da Extrema-Direita, tanto no Brasil quanto nos Estados Unidos, cujos presidentes se transformaram nos maiores símbolos, tanto de atrocidades políticas quanto de ataques às propostas das autoridades de saúde para conter a pandemia. Alguém poderia alegar que o ideário da Extrema-Direita, tanto brasileira quanto no resto do mundo, é uma mixórdia de vários anacronismos, tanto históricos quanto sociológicos e econômicos, sem falar no apelo constante às mitologias bíblicas, manifestações típicas de uma gritante deficiência intelectual. Mas é bom ressaltar que um dos aspectos mais preocupantes dos negacionistas atuais é a demonstração de ódio, a sanha que os impele a atitudes destrutivas, um grande desprezo pela vida, sobre tudo a dos outros, e tudo que ela representa, como mente aberta, alegria, prazer, arte, cultura, conhecimento.

A falta de conhecimento, por si só, não é destruidora, mas quando a carência de conhecimento é preenchida pela aversão ao próprio conhecimento, aí surge a revolta contra tudo aquilo que o conhecimento pode criar. O conhecimento é o maior aliado da vida para aquela pessoa que pode andar de cabeça erguida, sempre mirando novos horizontes, iluminados pelo sol da razão e da ciência, por isso é a primeira vítima do rancor daqueles, cuja vista fraca não permite abarcar mais longe do que a distância alcançada pelo próprio passo. Esses seres medrosos, soterrados em suas tristes convicções, vivem como arbustos, ao rés do chão, só se movimentam pela ação de alguma força externa, e estão sempre prontos a enredar os outros com suas próprias raízes secas, camufladas em solo arenoso, infértil, apodrecendo embaixo da terra, como cadáveres a quem oferecem o seu culto. A eles devemos gritar o nosso mais sonoro e retumbante NÃO.

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