Nossa classe média carece de qualquer tipo de refinamento. Ensaio sobre a cegueira de espírito.

Nossa classe média carece de qualquer tipo de refinamento, não dá o mínimo valor a qualquer nuance expressiva de alguma sutileza.

Após quase dois anos trancado em casa por culpa dessa maldita pandemia, e com as três doses da vacina anticovid inoculadas no braço, me senti autorizado a tirar umas férias na beira do mar. Para isso, escolhi um Resort numa praia do Nordeste, um desses em que a gente paga tudo quando faz a reserva, e quando chega lá, vive a ilusão de que está no paraíso, com tudo à disposição, sem custo nem esforço.

Na hora das refeições é só chegar pra mesa e se servir à vontade; quando satisfeito, levanta e vai caminhar um pouco para fazer a digestão e esperar o próximo banquete, a conta da comilança não nos preocupa. Quer dizer, como já foi tudo pago, a gente pode fingir que a fatura não existe. É bom acrescentar que, em situação normal de saúde pública, haveria alternativas mais interessantes fora do país, mas com toda a burocracia para viagens ao exterior, por conta do Corona vírus, sobrou a opção de mergulhar em águas brasileiras.

Então, a escolha recaiu sobre um local onde houvesse bastante espaço aberto para manter um mínimo de distanciamento. E assim acabei me hospedando num desses empreendimentos cujas fotos de publicidade na internet oferecem maravilhas nunca antes imaginadas nem sonhadas.  A ilusão nesses locais é a chave do sucesso. Mas essa ilusão depende muito do adestramento do olhar.

Dizem os estudiosos que o ser humano não vê tudo o que olha. Para ver tudo o que se olha é preciso ter um olhar educado, capaz de perscrutar além das aparências, os elementos que ficam escondidos. Pois esse é meu problema quando decido fazer turismo patrioticamente. Meu olhar é teimoso, quer ver tudo o que existe além daquilo apresentado aos olhos. E foi com essa índole de observador que aportei a meu local de destino.

Já na entrada, grande impacto visual pela grandiosidade do estabelecimento. Um prédio imenso, com corredores labirínticos onde o visitante precisava de um guia para achar as acomodações. No espaço público de circulação e lazer, uma açudada de piscinas que, à noite, iluminadas com lâmpadas de várias cores, piscando no fundo ou nas bordas, dão a sensação de um universo de fantasia, aqueles dos filmes mais delirantes. Nos horários de sol, a gente ainda podia se refestelar numa piscina com ondas.

Ninguém questionou a necessidade de uma piscina com ondas na beira do mar. Em tais situações não é aconselhável se questionar sobre o sentido das coisas. E na hora das refeições, muita, mas muita comida. Impossível fazer uma lista da exorbitância de saladas, tipos de arroz, carnes, frango, suíno, rês, assada, grelhada, com molho. O mesmo para as sobremesas. Um mundo de fartura, tanto para o estômago quando para os olhos, tudo ali, ao alcance da mão. Ou quase tudo.

Quem quisesse tomar uma cerveja, tinha de se contentar em engolir uma dessas das cervejarias tradicionais, que jorram nas mesas de metal dos bares do nosso país, todas elas produzidas com malte de milho e um sabor difícil de suportar por qualquer consumidor com um paladar um pouco mais exigente. Vinho, então, é bom nem mencionar. A única opção, um carrascão de uma vinícola da região, que não consegui sequer inalar o aroma – melhor dizendo, o mau cheiro, porque impossível denominar de aroma os eflúvios exalados por aquela zurrapa. Felizmente, havia suco. Muitos sucos. De manga, goiaba, acerola, uva, e mais uma pensa de todas as frutas que se possa imaginar. Fora isso, restavam os refrigerantes mais conhecidos.

Não é que eu seja um novo rico metido a besta, mas há alguns anos comecei a me preocupar com o bom gosto das coisas que consumo, principalmente comida e bebida, e meu paladar aprendeu a reconhecer a complexidade gustativa das iguarias ingeridas. Também aprendi a apreciar o prazer da degustação, em vez de me ingurgitar. Mas continuo humilde. Não faço questão de beber sempre uma artesanal belga, uma lambic, nem um pinot noir da Borgonha. Podia ser uma de fabricação nacional mesmo, uma dessas que resolveram romper com a tradição de oferta em massa para paladares entorpecidos. Mas não cheguei nem a sonhar com tais quimeras. A solução foi satisfazer minhas necessidades de líquido com água mineral e água de coco. O resultado é que, além da vida saudável, me mantive lúcido a semana inteira em que estive no referido hotel.

Esse estado de lucidez involuntária me levou fatalmente a algumas reflexões sobre o fenômeno do turismo brasileiro, ou mais precisamente, sobre o contingente de turistas que lotaram o hotel. Há ainda dois pontos dignos de nota. Primeiro, a ausência total de estrangeiros, tão comuns no nosso litoral nessa época do ano; o segundo é que, pelo preço da diária, o hotel é frequentado por gente de classe média, aquela parte da população que teria acesso a produtos mais refinados. Mas todos se refestelavam nas piscinas, engoliam litros daquela beberagem, como imagina-se que o velho Adão fazia com as águas cristalinas que corriam nos rios do Éden, nos primórdios da humanidade.

Pois aí é que está o busílis, conclui eu. Nossa classe média carece de qualquer tipo de refinamento, não dá o mínimo valor a qualquer nuance expressiva de alguma sutileza. Os únicos sentidos que possui é um olhar primitivo e um impulso de sobrevivência nutritiva que prioriza apenas a quantidade. Tal qual nossos ancestrais das cavernas, seu olhar é estreito porque suas necessidades são limitadas.

No caso presente, o que conta é encher os olhos com objetos grandiosos, de cores variadas de uma decoração kitsch para estimular apenas a capacidade de deslumbramento. Na hora da comida, o único propósito é de empanturrar-se, o alimento passa do prato direto para o estômago, sem a excitação das papilas gustativas, satisfazendo apenas o instinto animal de alimentação.

Naturalmente, isso não é nenhuma novidade para quem ainda se submete às ofertas de viagens pelas plagas de Pindorama. A minha dor é perceber que esse estágio no nível das satisfações infantis da classe média tupiniquim não é um fato condicionado pela pandemia. E já que falei em isolamento pandêmico, vale fazer associação com uma clausura na esfera do imediatismo material. O problema aqui é de uma incapacidade estrutural do olhar, uma cegueira psíquica que inibe o olhar e reforça a cegueira social.

O resultado óbvio é uma falsa consciência que considera apenas o poder aquisitivo como referencia de qualidade de vida e de bem estar. Assim, a visão de mundo está corrompida por objetos artificiais e falsos sinais de riqueza. A reclusão aqui não é do corpo, nem é provocada por um vírus, mas do espírito, imposta pela incapacidade de perceber que os seres humanos possuem mais sentidos que devem ser aguçados. Esses outros sentidos, o paladar, o olfato junto com uma habilidade de apreciação estética, mostram que a vida é muito mais complexa e cheia de nuances, e que o prazer mais intenso de uma viagem de férias não pode ser debitado na fatura de um Resort do tipo all inclusive.