O Álibi da Moral

Volta e meia, uma simples notícia de jornal é suficiente para provocar o pânico nas cabeças entupidas de moral puritana. A última que causou grande rebuliço foi a da mulher flagrada pelo próprio marido, dentro do carro dela, em plena via pública, numa relação sexual com um morador de rua. Segundo os relatos jornalísticos, o marido julgou se tratar de estupro, partiu pra cima do atrevido, desferiu alguns tabefes na cara do sujeito, e o caso foi parar na delegacia. E nas páginas dos jornais.

A suspeita de violência sexual contra a esposa é perfeitamente legítima por parte do marido, dados os índices de agressões sofridas pelas mulheres em várias situações. Também é normal acreditar que ele estivesse seguro de que a esposa só se envolvia sexualmente com ele. O problema é que, mais tarde, diante do delegado, a mulher contou a história de maneira diferente.

O resumo do caso é que o casal acabou dentro do carro, em inegável conluio carnal, por livre espontânea vontade de ambos. O marido, então, correu a espalhar aos quatro ventos que a esposa estava sofrendo de problemas mentais.

É perfeitamente compreensível essa saída estratégica de um marido ao descobrir a consorte numa atitude que o vulgo normalmente chama de traição. Difícil aceitar que a amada estava dividindo com outro um privilégio que ele julgava ser o único titular de fato e de direito. E ainda mais com um morador de rua, preto, com aquela aparência típica de quem não pratica o saudável hábito de tomar banho, ao menos de vez em quando. Mais ainda, tratando-se de uma mulher jovem e bonita, conforme mostraram as fotografias que circularam na internet, compulsivamente compartilhadas nas redes sociais. Ela certamente não teria dificuldades de dar a outro homem as prerrogativas até então exclusivas do marido.

Mas, não. Ela escolheu o tipo mais improvável para quem só consegue pensar dentro das convenções de normalidade. Então, como já disse antes, não há nada a estranhar, nem mesmo a censurar, na tentativa do marido de amenizar a dor de cabeça causada pela suposta falsidade conjugal de que se sentiu vítima.

O que se torna inacessível ao entendimento é que uma multidão de usuários das redes sociais tenha incorporado, com a urgência dos primeiros socorros, essa versão, para a qual não existe um único indício nas matérias jornalísticas além da suspeita do próprio marido. Mais estranho ainda é a constatação de que essa imensa equipe de médicos improvisados, prontos a diagnosticar as dificuldades mentais da moça, é formado majoritariamente por mulheres.

A repercussão desse episódio traz à lembrança um outro caso parecido. Não faz muito tempo, o ator inglês Hugh Grant, na época um homem jovem, bonito, rico e famoso, objeto de desejo de dez em cada dez mulheres heterossexuais, apanhado em flagrante, também num carro, ao ar livre, com o membro viril afogado na boca de uma prostituta de calçada.

Fazendo-se uma comparação bem simples, pode-se dizer que, em termos de posição social, o ator está para a mulher infiel assim como a boqueteira está para o mendigo. E não lembro, naquela época, ninguém acusar o tarado britânico de problemas mentais por estar em intimidade explícita com uma mulher de condição social e financeira muito inferior a dele. O que mais repercutiu foi uma acusação de falta de caráter, mais precisamente de adultério, pois que o moço mantinha um relacionamento sério com uma moça também jovem, linda, rica e famosa.

A questão parece bastante óbvia: uma mulher branca, jovem, bonita, de classe média, casada, surpreendida num entretenimento sexual fora do padrão de normalidade, com um homem que não é o marido, é algo incompreensível, muito menos ainda aceitável. Solução: só pode estar sofrendo de problemas mentais.

Se o amante fosse um homem branco, bem vestido, banho tomado e perfumado, aí o moralismo do senso comum teria outro álibi para anuência imediata da isenção de culpa da mulher: o marido não dá conta, não cumpre corretamente nem com a necessária eficácia o dever de macho provedor.

Essa é talvez a explicação mais machista para aceitar o fato de que muitas mulheres casadas procuram recreação fora do casamento. O varão do lar é encarregado de satisfazer todas as necessidades da mulher, inclusive aquelas produzidas pelos devaneios de uma alma mais sensível. Caso ele falhe no exercício da tarefa, a pobre criança, indefesa e carente, sem o mínimo controle dos próprios desejos, sai por aí a procurar alívio em braços alheios.

Ou seja, a mulher precisa do controle do marido até nas mais simples veleidades. Sem dúvida, essa é uma justificativa aceita pelo público, ainda que implicitamente, para que a mulher casada se deleite na cama com outro homem. Mas, se essa causa não é explícita, ou se a brincadeira transgressora apresenta algum sinal de bizarrice, então surge às pressas, a assistência moral, encarregada de atribuir à protagonista alguma deficiência na saúde mental.

Ninguém consegue aceitar a ideia de que uma mulher casada procura uma aventura sexual fora do casamento simplesmente porque ela está afim de ter uma aventura sexual fora do casamento. É mais fácil debitar uma falha na conta do benfeitor todo poderoso, e assim conservar o machismo milenar. Ou jogar na paciente a pecha de surtada, do que admitir que qualquer mulher é livre e responsável para a escolha de viver um momento de lazer sexual, mesmo que pareça meio bizarro, com quem e quando ela quiser.

Imagem: Photo by Sven Mieke on Unsplash