O Álibi dos Deuses

De todas as violências praticadas pelos seres humanos, o estupro contra mulheres é certamente a mais deplorável. Isso se for de mulher adulta, porque quando a vítima é uma criança, então, tem-se a manifestação da barbárie. Além da desigualdade de força física, o estupro ainda envolve uma dimensão subjetiva, pois a cópula é algo da esfera íntima e só a própria pessoa pode escolher livremente os parceiros com quem deseja se unir. Portanto, o ato sexual não consentido, tal como uma tortura, traz para o torturado, além da dor física, uma humilhação moral e emocional que nem todas as mulheres conseguem superar com facilidade. Só esse aspecto já seria suficiente para classificar o estuprador como um facínora.

O caso mais recente de grande repercussão, ocorrido nesse mês de agosto de 2020, foi o da menina de dez anos, violentada pelo tio desde os seis. A sequência de horrores só foi interrompida porque a menina engravidou, e graças a um raio de lucidez de um juiz, ela foi conduzida a um hospital para interromper legalmente, e com segurança, as consequências mais maléficas do ato delituoso. Mas, eis que uma horda se levantou em urros esganiçados e se arrebanhou em frente ao hospital na hora da operação. Em solidariedade à inocente currada? Não. Em protesto contra o aborto, já autorizado pela justiça, porém, mais condenável do que o próprio estupro para alguns seguidores dessa malta de fanáticos enraivecidos. Os argumentos: a interrupção de uma vida que se formava; desobediência à lei divina que proíbe o aborto; que as mulheres são umas desavergonhadas que provocam os desejos masculinos. E houve até quem insinuasse: se a menina aguentou calada durante quatro anos é porque estava gostando. Nenhuma palavra sobre o sofrimento físico nem emocional da menina, muito menos contra o comportamento do tio.

O que leva uma multidão ensandecida a ignorar a destruição de uma infância em nome de uma suposta lei divina que permite o crime, mas proíbe que se amenize as consequências do próprio crime? É o fanatismo religioso que insiste em condicionar o mundo real a um rosário de superstições que aprisionam as mentes desde os princípios da humanidade.

Em todas as mitologias de que se tem conhecimento existe uma legião de deuses que se aproveitam dos humanos para satisfazerem desejos e caprichos. O Zeus dos gregos não hesitava em se metamorfosear em qualquer animal para se aproximar de uma mortal que despertasse sua intensa libido, sem a menor consideração quanto ao desejo da escolhida. Na mitologia judaico-cristã, a violência contra a mulher não recebe punição mais rigorosa. No capítulo 34, do Gêneses, temos a seguinte situação: ao se instalar em Canaã, a filha de Jacó, chamada Dina, despertou a lascívia de Siquem, um natural da terra dos cananeus, “ele tomou-a, dormiu com ela e lhe fez violência”. Ao tomarem conhecimento, pai e irmãos da jovem enfureceram, no entanto, o lúbrico amante se mostrou apaixonado e se propôs a aceitar Dina como esposa. Relutância por parte dos familiares, pois Siquem não era circuncidado. Mas, a paixão do moço era tamanha que ele aceitou a circuncisão, e o conflito foi resolvido. A solução, no entanto, foi acertada num conchavo entre o noivo e o pai da moça. A própria Dina em momento algum foi consultada sobre casar com um homem que havia cometido um atentado contra ela. Já a seita dos cristãos, a que atiça o ódio daquela turba que cercou o hospital, tem origem numa situação que remete às lendas dos gregos. Maria, uma virgem prometida em casamento a José, um dia recebe a notícia de que dará à luz um filho, embora nunca tenha mantido relações carnais com o futuro marido. Mas, disseram a ela, tratava-se de uma decisão tomada lá nas alturas celestiais, não havia chance de recusa. Em momento algum ela foi consultada sobre o papel de mãe, ainda que ao fruto de seu ventre estivesse destinado a uma vida grandiosa. E o mais curioso, o anjo que desceu do céu para anunciar o grande fato, em Mt. 1:18-23, se dirige a José, e não a ela. Ainda que a fecundação da jovem tivesse como origem o espírito santo, como diz a lenda, sem contato físico, portanto, não se exclui aqui a noção de violência, visto que a força atuante que agride é infinitamente maior do que a da pessoa agredida, que não consegue sair da condição de passividade nem reagir. Vê-se, nos dois casos, que a vontade da mulher bem como as consequências físicas e emocionais para ela não é levada em conta e a aceitação de um novo estado de coisas é sempre resultado de um acordo do qual ela é apenas um objeto de negociação.

É claro que esses dois episódios são fabulações de culturas arcaicas que orientavam a existência por crendices populares em seres celestes. Mas, as narrativas das origens, ainda que fictícias, são produtos de concepções arraigadas em hábito e condições reais de vida. De qualquer maneira, trata-se de uma longa tradição de desrespeito à mulher enquanto subjetividade legítima, com desejos, convicções e autodeterminação. E é triste constatar que, ainda hoje, existam pessoas que recorram a essas mesmas fábulas para legitimar um posicionamento. No caso da multidão que se aglomerou na porta do hospital para protestar contra o aborto permitido pela justiça, não houve uma única voz que se preocupasse com a opinião da pessoa mais interessada no desenrolar da história: a menina estuprada. A condenação era justificada com apelo a supostas leis divinas criadas, na verdade, apenas nos devaneios dessas mesmas mentalidades tão saudosas dos tempos primitivos. Essas mesmas leis que são cegas quanto à truculência imposta a uma criança de dez anos, porque mantém os olhos voltados para valores morais abstratos.

Os atos de violência contra a mulher, desde os mais leves até a abominação do estupro, têm respaldo ancestral nas mitologias e nos seres superpoderosos criados por elas, como se a mulher não passasse de um animal a ser imolado em sacrifício ritualístico para a satisfação única dos espíritos do além. Considerando-se que os deuses não são nada mais do que projeções das fantasias que os humanos criaram para lidar com seus medos e deficiências, é óbvio que as façanhas divinas são uma maneira de transferir a um ser imaginário a realização dos seus próprios desejos. E já que o estupro é tolerado nos textos ditos sagrados, enquanto o homem acreditar na existência de deuses e apresentar o álibi da fé para justificar atrocidades, ele terá sempre à mão um cúmplice para assumir a responsabilidade dos seus próprios atos.

*texto publicado originalmente em:  <https://bit.ly/3mkeZnI> Em 27.agosto.2020.

**Photo by Luis Galvez on Unsplash