O “Centrão” das Atenções

A eleição acabou. As urnas fecharam, os vencedores comemoraram, os perdedores choraram. Tudo normal, como sempre. Pensando bem, não foi tudo normal. Encerrado o horário estabelecido para se exercer o direito mais importante da Democracia, a gente se concentrou nos comentários dos analistas políticos das emissoras de televisão, que se esmeraram na tentativa de elucidar os resultados das urnas. Aí sim, a reação era de espanto e dúvida. Será que estão falando das eleições ocorridas hoje no Brasil? Será que eu fui teletransportado para outro país e digitei o meu voto alienadamente? Levantei o volume da TV, concentração, não havia engano. Estava tudo normal. Ou já seria o novo normal?

Dizem alguns filósofos que conhecer não é nada mais do que elaborar um discurso que consiga descrever o objeto com alguma coerência, num arrazoado que possa ser aceito por todo mundo. Em outras palavras, urdir um significado. E para explicar, é necessário que o sujeito já tenha concluído esse processo do conhecimento, quer dizer, ter encontrado um significado. E qual o significado que os autointitulados experts se dedicaram a construir? O de que os grandes vencedores foram os partidos de centro. Porém, nas palavras dos nobres observadores da realidade brasileira, MDB, PSDB e DEM são partidos de centro.

Uma opinião dessas poderia entrar na conta de um simples equívoco, quando não de um disparate maldoso, se tivesse sido proferida por um único âncora de telejornal. Mas não foi isso que se viu. Grande parte da imprensa tradicional se empenhou nessa asneira como se fosse a constatação de uma verdade cientifica, cristalina, que ninguém ousaria contradizer.

Outro ponto a ser salientado dessa bobageira que se esforçava em exibir ares de seriedade, é o que eles registram como consequência clara desse fenômeno:  os grandes perdedores foram os políticos dos extremos, ou seja, na visão deles, Bolsonaro e Lula. Parece haver aí uma indisfarçável intenção de colocar os dois no mesmo patamar e criar uma narrativa de que ideologias extremas não têm mais lugar na sociedade brasileira.

Uma avaliação desse tipo seria apenas ridícula e digna de escárnio se não fizesse parte de um projeto, desde já posto em prática, com vistas à escolha de novo presidente em 2022. E ainda mais indigna de crédito pelo fato de esconder algumas nuances fundamentais. Essa sonegação de dados essenciais de uma crise social não é nenhuma novidade em boa parte da imprensa brasileira. Entre os detalhes ignorados é necessário destacar alguns.

Para começo de conversa, Bolsonaro, um caso único de presidente que, em pleno exercício do poder, não conseguiu sequer fundar um partido próprio, é apenas um fogo de palha que entrou em combustão no calor do golpe de 2016, mas, como se vê atualmente, por causa da crônica incompetência e total falta de habilidade, não passa de um defunto que ainda não foi enterrado, e daqui a dois anos será apenas uma fonte de mau cheiro e de asco, que provocará a repulsa de quem tiver que chegar perto dele. Querer colocar o ex-capitão miliciano no mesmo nível que o Lula é de uma desonestidade típica de alguns veículos que embrulham os fatos com rótulos falsos, passam uma interpretação deformada como notícia, para disfarçar os próprios interesses.

Seguindo em frente deparamos com mais um detalhe, o mais precioso de todos, e que foi escamoteado para que as coisas encaixassem direitinho: o de que o Lula só está fora da política porque foi interditado por um golpe que teve o apoio e a cumplicidade do Judiciário, foi jogado em uma cela sem nenhuma prova consistente, com os direitos públicos cassados. Não fosse isso ele seria hoje o presidente eleito pelo voto popular. Quanto à insinuação de que o Lula é um político que atua no limite extremo da esquerda é uma falácia tão cômica que dá até preguiça de comentar. Mesmo assim, recomenda-se uma leitura do conceito de Revolução Conservadora protagonizada por Lula nos dois mandatos que exerceu na Presidência.

Mas não é só isso. É bom dar uma olhada na identidade supostamente centrista dos partidos que conquistaram mais prefeituras em 2020.

MDB, que antes era PMDB, que antigamente era também MDB. Trata-se de uma agremiação mercenária, sem nenhuma orientação nem compromisso ideológicos, que nunca elegeu um presidente pelo voto direto, mas sempre esteve à sombra do poder, prestando serviços de todo tipo, sempre esperando os escrutínios dos pleitos para ver com qual candidato se alinhar. Se a aliança se tornar improdutiva do ponto de vista financeiro, a traição é um recurso possível para procurar novos aliados.

Hoje seus correligionários garantem, batendo no peito a gargantear, que essa agremiação foi a única força a enfrentar a ditadura militar. Uma simples retrospectiva nas peripécias emedebistas mostra que a verdade é outra, o partido foi apenas tolerado porque não apresentava nenhum perigo, e o regime precisava de uma oposição de fachada para aparentar legitimidade.

PSDB, saiu de uma costela do antigo MDB, com um ideal de Social Democracia que nunca concretizou, e se colocou como o representante ideológico das elites econômicas brasileiras.

DEM. O rótulo dessa turma como centro-direita é o mais burlesco de tudo que se viu até aqui. Não se ouviu nenhuma palavra sobre a história do partido, que antes era PFL, que antes era PDS, que antes era ARENA, que dava sustentação política à ditadura militar.

Como se vê, essa atitude de classificar partidos políticos, colocando no centro aqueles que sempre estiveram à direita do espectro ideológico é um programa de desinformação do eleitor, para mais uma vez interferir no rumo dos movimentos populares. É bom lembrar que essa mesma imprensa sempre teve uma postura ambígua, para não dizer esquizofrênica, em relação a Bolsonaro: não gosta dele, mas não pode bater muito para não abrir espaço para a volta da esquerda, então amarra-o a Lula e joga os dois na arena como alvos dos ataques justamente dos mais raivosos. Com essa estratégia ainda pode posar de neutra.

Estranha neutralidade que consiste em pegar a antiga direita, que eles gostam de chamar de civilizada, e pintá-la em cores mais suaves para confundir aquele eleitor inocente e simplório que se deixa levar por uma retórica bem engendrada. Naturalmente, não se pode esperar honestidade intelectual de quem sobrevive graças à desinformação sistemática. O que nos resta é continuar atentos, sempre prontos a responder a esse tipo de factoide, e mostrar que esquerda não é um partido, é uma visão de mundo, uma postura compromissada diante da vida e do mundo, e esse sentimento jamais será destruído, nem por interpretações da imprensa, nem por golpes, nem por condenações de um Judiciário parcial e tendencioso.

E que os partidos de esquerda, aqueles que lutam por justiça social, estarão sempre no centro das atenções de todo cidadão que sonha com uma sociedade mais igualitária, mas humana, com uma imprensa que se ocupe em transmitir a verdade dos fatos em vez de criar barrigas para o entretenimento e distração daquele que mais precisam de boa informação para escolher um representante digno de confiança.

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