O gênero da questão

O mundo das ideias é um mercado farto em produtos de fácil assimilação para consumo imediato. Como a maior característica do ser humano é a sociabilidade, as pessoas sentem uma necessidade vital de conversar, e para isso precisam de sentenças que circulem por todas as mentes com alto índice de aceitação para não criar atritos desnecessários. Afinal de contas, a camaradagem é o ponto forte na conquista de simpatias.

As datas comemorativas são as mais favoráveis para a troca desses souvenirs do pensamento apressado. E nesta época, em que se comemora o dia internacional da mulher, alguns desses aforismos simplistas, notadamente aqueles referentes aos conflitos de relacionamentos entre homens e mulheres, por mais antigos que sejam, sempre voltam. Um bom exemplo de bobagem com pretensões de axioma, colhida no varejo intelectual é esta: “as mulheres evoluíram muito e os homens estão com medo” É o tipo de afirmação que pode servir de consolo para quem precisa justificar situações desconfortáveis, mas não sobrevive a uma análise mais consistente. A primeira pergunta que se pode fazer a esse respeito é se existe evolução de um gênero mais que de outro. Embora eu não seja doutor no assunto, a simples observação dos fenômenos da vida me autoriza a responder negativamente. O que existe no processo de desenvolvimento da humanidade é que algumas mentes vão tomando a frente de outras. Em função das características de formação, condições de acesso às experiências existenciais mais significativas, trajetória pessoal e outras tantas variáveis, algumas pessoas desenvolvem concepções de mundo mais avançadas do que outras. As novidades na maneira de ver e estar no mundo se formam espontaneamente e algumas pessoas, independente de gênero, aderem a umas e desaprovam outras. Portanto, nada garante que alguém esteja à frente de seus contemporâneos em todas as questões que envolvem uma vida. E fica evidente, também, que esse avanço mental não está restrito a nenhum gênero.

Partindo desse ponto, vale a pena examinar algumas particularidades da vida social para saber até onde as pessoas, homens ou mulheres, evoluíram. E para ficar apenas no mais importante aspecto do relacionamento entre gêneros, podemos perguntar se houve alguma mudança muito significativa nos últimos tempos, no que diz respeito às uniões conjugais. Até onde se pode observar, as pessoas ainda estão considerando o envolvimento erótico/afeitivo como o ápice da realização pessoal. E no caso das mulheres, a felicidade só será plena se o conúbio for contemplado com a maternidade. Ate aí não haveria nada demais, afinal, acasalar e fazer filhos são instintos naturais para a sobrevivência da espécie. O problema é quando esses instintos passam a ser condicionados por concepções morais, que são instrumentos ideológicos de manutenção de um aparato social.

No caso do casamento tradicional entre homem e mulher, essas marcas ficam mais evidentes. No momento em que assumem um relacionamento convencional as pessoas também se submetem a todas as convenções que o regulamentam, e com isso reproduzem, muitas vezes sem saber, os papeis sociais mais conservadores. A partir daí, para cada situação vivenciada pelo casal haverá uma resposta emotiva a ser ostentada, exigida pelos critérios que orientam o convívio. É inegável que muitas manifestações sentimentais são manipuladas socialmente, ou seja, são externadas porque a ocasião ou o meio exigem que assim seja. De toas as excitações da sensibilidade humana com essas características, o ciúme conjugal é a mais comum. Ele se apoia no estrato básico da família tradicional, o sentimento de posse entre as pessoas. E para fechar coma provocação lá do começo, não creio que em relação a esse ponto, algum dos gêneros esteja em vantagem sobre o outro. Ambos repetem a ladainha de que quem ama sente ciúme. Não atinam que muitas dessas reações emocionais, tidas como uma dimensão natural do humano, não passam de construções sociais.

O amor romântico, uma invenção medieval que serviu para manter a sexualidade feminina nos limites domésticos, somado à santificação da mulher na condição de mãe, continua neste século 21 a orientar não só os discursos que sustentam o casamento, mas também uma série de princípios agregados que condicionam a livre fluência de sentimentos, entre eles a exclusividade afetiva, calcada na noção de propriedade privada, e com ela as noções de monogamia e fidelidade conjugal. Nesse contexto, os afetos estão condicionados a uma existência exclusiva entre duas pessoas, e adquire o mesmo status de um móvel da casa, um objeto de decoração da vida do casal. E não vejo à minha volta nenhum dos gêneros disposto a rever esses conceitos.

Com essas considerações, o que se pode concluir é que, enquanto a livre troca de afetos entre os seres humanos for impedida ou limitada por valores morais, não haverá liberação nem de homens nem de mulheres.

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