O poder da infância – uma verdadeira patologia social

O bolsonarismo é uma patologia social, disso ninguém mais duvida, a não ser, é lógico, os que sofrem dela. Para os crentes em forças ocultas, predeterminações cósmicas e outras crendices, deve ser um grande mistério que essa calamidade seja contemporânea de outra relativamente ainda mais mortal, o coronavírus. E digo relativamente porque a segunda epidemia ataca o organismo humano e traz a morte física, enquanto que a primeira, pelo menos até agora oficialmente, só se voltou contra a inteligência, a cultura, a atividade intelectual, a capacidade de refletir, a arte, enfim, tudo aquilo que se pode chamar de vida. Em resumo, é uma ideologia da morte. Mas, eu sou um agnóstico convicto e, ainda por cima, com gosto pelo estudo da História, não vejo, portanto, nada de sobrenatural nisso. Apenas coincidências.

As origens e implicações dessa assombrosa moléstia – refiro-me à primeira catástrofe mencionada: a paixão de alguns pelo atual presidente da República – assim como os tratamentos adequados, eu deixo aos cientistas, sociólogos, psicólogos, psiquiatras, talvez até aos teólogos, que ainda hoje tentam explicar as pragas lançadas sobre o Egito. Como disse, eu sou cético e não disponho de conhecimentos específicos especializados, nem em política nem em castigos divinos, então, só me resta tentar algumas divagações sobre o assunto. Começando pela demanda mais comum e mais antiga, a volta da Ditadura Militar. É um caso típico de falência do intelecto, já nem falo do conhecimento de História porque seria exigir demais de quem tem tão pouco a oferecer. Os seguidores do ex-capitão são deficientes nesse quesito a ponto de acreditar que um regime autoritário só valeria para os outros, entenda-se, aqueles de quem eles não gostam, porque o nível de compreensão da realidade é tão infantil que nem se pode falar em adversário político. Aliás, a infantilização é a característica mais marcante desse espectro ideológico que despertou com a gritaria do então deputado do baixo clero, que ameaçava e prometia exterminar a velha política de conchavos. Tratava-se de uma legião adormecida, que acordou de repente, sem entender o que estava acontecendo, mas precisava tomar um rumo, alguma direção para espantar o mofo da inanição, optou por seguir aquele que fazia mais barulho. Nunca se preocupou em entender como o novo profeta permaneceu por quase trinta anos num medíocre anonimato no Congresso Nacional, sem apresentar nenhuma contribuição relevante, nem mesmo para combater aquele mal contra o qual ele agora se levantava. Claro está que a necessidade era de uma voz que parecesse mais forte, que desse a ideia de uma autoridade firme e decidida.

E aqui vai a minha humilde contribuição aos estudiosos no neofascismo, versão tupiniquim. O que os bolsonaristas buscavam e encontraram no ídolo deputado era a imagem de um pai. Mas, não um pai qualquer, como procuram os órfãos ou abandonados. Tinha que ser um herói valente, despótico e, ao mesmo tempo, superprotetor, aquele que chega em casa à noite, os filhos estão brigando porque um chutou a bola na cara do outro, então, o chefe da família dá uns tabefes em cada um, manda os pequenos fazerem as pazes e irem dormir. E a paz volta ao lar. Melhor ainda é quando a rusga é com o filho do vizinho, o pai vai lá tirar satisfação, ou pelo menos finge que vai, chega no portão, dá uns gritos que fazem os rebentos tremerem de medo e acreditarem que o vizinho jamais se atreverá a uma nova desfeita. E o pai volta aos aposentos domésticos com a certeza de que deu aos filhos mais uma demonstração de invencibilidade.

Dá para buscar a origem desse fenômeno lá na infância, quando os pimpolhos assistiam desenhos animados, aqueles em que um personagem se via em apuros pela perseguição de um vilão, mas, proferia uma palavra mágica e o super-herói se manifestava diante dele, uma epifania moderna em que as forças do bem estabelecem uma relação direta e afetiva com os desprovidos e os necessitados. É de se esperar que na mente de qualquer criança que assiste muito televisão, o mundo esteja bem dividido entre os defensores do bem e os agentes do mal e, mais evidente ainda, é que ela, a criança, vive sempre do lado do bem, portanto, uma potencial vítima dos espíritos malignos, mas em compensação terá sempre a proteção do super-herói. Tem aí uma noção de pureza de ideias, sentimentos e de comportamentos que é típica da infância, e que a pessoa acredita que ainda não perdeu. É isso que explica esse fanatismo cego que leva os bolsonaristas a aplaudirem e defenderem qualquer asneira feita ou dita pelo seu ídolo.

Se minhas investigações tiverem algum fundamento, creio ser muito difícil encontrar, ao menos de imediato, um método profilático eficaz para essa terrível doença. Naturalmente assim como é agradável assistir as gracinhas de uma criança que está descobrindo o mundo real, a gente se diverte às pampas quando vê um bolsonarista conduzido por alguma fantasia mirabolante, sem nenhum apoio na experiência concreta. Por exemplo, uma trupe que andou pela rua, com cartazes, pedindo a volta de eleição indireta para presidente. Quem, a não ser uma criança, ou um ‘bolsominion’, nos proporcionaria tamanho deleite. A questão é que quando a infância chega ao poder a brincadeira, antes graciosa, se transforma numa tragédia e a simples diversão vira um reinado do terror.

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