O ponto e a curva: o prato cheio da política brasileira.

Para quem gosta de clichês a política brasileira é um prato cheio. Basta pensar naquela sentença que já se tornou cristalizada no senso comum e diz que o Brasil não é para amadores. Pode ser que exista algum país que favoreça o diletantismo de alguma motivação, o fato é que, por aqui, nos últimos tempos, as pessoas andam se entregando aos assuntos públicos com uma virulência de quem despreza a própria vida. Veja-se o imbróglio do deputado Daniel Silveira, preso recentemente por fazer apologia à Ditadura. Um incidente que poderia muito bem entrar para história das bizarrices da política brasileira, um deputado eleito democraticamente pelo voto popular, pedir o fechamento do Congresso Nacional, instituição que ele deveria antes defender do que atacar.

E o nonsense não para por aí. Ao ir em cana, o parlamentar, que advogava também pela reedição do famigerado AI-5, alegou que as fanfarrices pelas quais foi punido, estavam protegidas pelo direito de expressão. Não bastasse isso, ainda falava em impetrar um Habeas Corpus.

Além da incoerência de raciocínio, o deputado demonstrou, por outro ângulo, total desconhecimento da história da Casa que o acolheu democraticamente, pois o AI-5 aboliu todos os direitos de expressão, revogou também a lei do Habeas Corpus, e a partir daí, qualquer cidadão que ousasse expressar opinião contrária ao governo era trancafiado sem julgamento, sem acusação formal, sem qualquer direito de defesa. E, acrescente-se, deveria se considerar um sujeito de sorte se saísse de lá com vida ou todos os ossos inteiros.

Episódios desse tipo devem entrar para os arquivos das curiosidades da política brasileira para serem estudados pelas gerações futuras, assim como hoje se estuda, com grande prazer e muita diligência, os hábitos exóticos das civilizações antigas.

Deve ser por isso que o presidente da Câmara correu para classificar o comportamento do deputado como um ponto fora da curva. Talvez seja uma referência à Curva de Gauss, aquela em forma de sino, cuja área delimitada pela linha curva pode conter eventos previstos e esperados sem muita surpresa numa situação de normalidade.

Nesse caso, a área formada pela linha em curva, ou seja, os outros deputados, são uma série de pontos que constituem um corpo orgânico, irmanados na defesa de interesses nem sempre republicanos, em virtude dos quais precisam manter uma aparência de legalidade para poderem continuar agindo.

Não é segredo para ninguém que ouros deputados, numa votação secreta, endossariam as patranhas do colega presidiário, mas num escrutínio sem o anonimato do sigilo, tiveram de aderir ao discurso oficial de resguardo da Democracia.

Acontece que não foi no quesito de pendores democráticos que Daniel Silveira pulou fora da curva. A mentalidade fascista de parte da sociedade brasileira é um espectro que paira sobre Brasília há bastante tempo, e muitos dos que estão lá, inclusive o Presidente da república, não hesitariam em agir se pudessem se livrar de algumas instituições, como o próprio Congresso e sobretudo o Supremo Tribunal Federal – STF.

E a maioria dessas ideias fazem parte do discurso propagado e defendido pelo próprio Jair, ideário a que se deu o nome de bolsonarismo.  Mas, o grande erro do deputado foi acreditar que bastava ele esbravejar impropérios para todas as direções, se apresentar como porta voz dos que não ousam se manifestar, para fazer parte do clube, ser aceito na turma, ser convidado para as festinhas dos fins de semana.

Um passar de olhos pela ficha do réu dá uma ideia mais clara do erro que ele cometeu. Do ponto de vista criminal, quando cobrador de ônibus, falsificou atestado médico. E, quando policial militar, sofreu dezenas de punições por indisciplina. Mas, não foi por isso que ele foi mantido no lado de fora, feito um faminto que espia pela janela do restaurante enquanto os comensais se banqueteiam.

Oriundo justamente das classes populares, as que despertam mais aversão na maioria dos membros daquela turma onde queria entrar. Não restou a ele o papel de vigilante, mantido a uma distância conveniente, para vociferar, com o rancor dos fracassados, contra qualquer medida ou proposta de caráter inclusivo e socializante apresentada pelos movimentos sociais e seus defensores.

É bom lembrar aqui uma de suas façanhas mais bombásticas: a quebra da placa de rua em homenagem à vereadora Marielle Franco, providências que muitos políticos gostariam de tomar, mas sabiam dos perigos de semelhante desatino. Então, surgiu Daniel Silveira, com uma ostentação de músculos inversamente proporcional à capacidade intelectual, num gesto bem simbólico de tentar apagar a imagem de uma militante que, em vida, incomodava muito vários políticos em cujo meio ele sonhava imiscuir-se, e continua amedrontando, mesmo depois de assassinada.

Mas, ele não foi avisado, e não tinha discernimento intelectual para entender por conta própria, que não deveria arreganhar os dentes para autoridades constituídas, e quando lançou um rosário de pragas sobre os ministros do STF, foi detido e abandonado pelos colegas, muitos dos quais teriam lhe prestado socorro, desde que não precisassem arriscar a vida.

Encarcerado, sem o amparo oficial dos correligionários, certamente será cassado, e terá o mesmo destino daqueles que se propõe a defender causas alheias: ser usado enquanto se mantém dócil, dentro de um padrão determinado, mas, quando começa a apresentar desvios na linha previamente traçada, é jogado fora. Vira um ponto morto, que nunca fez parte da curva, muito menos da área formada por ela. Um simples borrão que sem demora desaparecerá.

Um enredo idêntico ao vivido pela ex-feminista, Sara Winter, que, mesmo sem mandato legislativo, também se postou na porta da casa, uivos estridentes, com propósito de assustar curiosos amedrontados. Mas, ao ser também enjaulada, igualmente desamparada, desapareceu do horizonte da política, como um ponto fraco ao ser raspado por uma borracha numa folha de papel em branco.

Destino muito diferente teve o senador Chico Rodrigues, acusado de desviar dinheiro destinado ao combate à pandemia do Corona vírus, e, para arrematar, flagrado com uma boa quantia de cédulas escondidas na cueca. Com a prisão decretada pelo STF, teve o pronto socorro dos colegas do Senado, e, poucos dias atrás, reassumiu o cargo, sem grandes receios de uma punição futura.

Mas, esse sempre foi um ponto importante na formação da linha curva, comportamento discreto de quem não quer chamar a atenção para os próprios atos, nunca pôs em risco a vida de seus pares, e, se já não fosse suficiente, chegou ao parlamento com as recomendações de uma origem abastada. Para se ter uma ideia da diferença entre os dois parlamentares, e o papel destinado a cada um na engrenagem política, basta dar uma olhada na biografia do senador, disponível a acesso fácil na Internet.

Num depoimento posterior, um discurso certamente escrito pelo advogado, Daniel Silveira se mostrou arrependido e afirmou que aquela exibição espalhafatosa serviu para um aprendizado.

É de se duvidar que uma estadia de menos de vinte e quatro horas na cadeia tenha ensinado alguma coisa para um indivíduo com claros sinais de deficiência intelectual. Mas, para quem observa os fatos com disposição de aprender alguma coisa, a maior lição que poderia ser assimilada pelos defensores do bolsonarismo é que os maiores interessados na implantação das pautas fascistas pelas quais eles tanto se batem, não podem se mostrar publicamente.

Por isso se aproveitam de inocentes simplórios como Daniel Silveira, mais músculos do que cérebro, raiva confundida com coragem, posicionado em local apropriado, como um cão de guarda, com a missão de latir bem alto, fazer bastante barulho para testar a paciência das instituições. Cumprida a tarefa, serão jogados fora, apagados dos registros, um ponto que nunca contribuiu para o fortalecimento da curva.

Photo by Feliphe Schiarolli on Unsplash