O primeiro Barolo a gente nunca esquece

Tomar um Barolo foi um passo importante na minha formação de enólogo amador e autodidata.
Outrora, o conhecimento que eu tinha dessa preciosidade se limitava a informações colhidas em várias leituras sobre a região do Piemonte, e sobre a uva Nebbiolo. Sabia, por exemplo, do alto nível de adstringência desse vinho. Mas, me faltava vivenciar o significado dessa palavra. Em conseqüência de um paladar em processo de educação, não conseguia definir muito bem essa sensação na língua. Por isso, me dava por satisfeito com esse conhecimento puramente livresco dos aromas e sabores. Me embriagava só de imaginar a imensa complexidade de estímulos olfativos sugeridos pelos manuais. Cada vez que entrava numa loja de vinhos e encontrava o nicho dos italianos, entrava em devaneios com o objeto do meu desejo. Porém, bastava dar com os olhos na etiqueta do preço para o sonho se transformar em pesadelo, no qual um cartão de crédito gigante caía sobre a minha cabeça.
Mas meus problemas acabaram quando um amigo voltou de viagem da Europa e entrou lá em casa com um embrulho na mão e anunciou: “eu te trouxe uma lembrança de viagem”. Recebi o pacote e fiquei bêbado de alegria ao reconhecer o vinho que tanto me fascinava. Em seguida, o visitante advertiu, meio se desculpando: “olha, esse não é dos grandes Barolos”. Sob efeito do deslumbramento eu falei, “ora, é um Barolo, o resto não importa”. E só não abri ali mesmo porque precisava de uma refeição adequada para harmonizar. Enquanto o momento propício não chegava, consultei várias vezes o Larrousse do Vinho e o Google, em busca de informações sobre o produtor. Só então atinei na data e vi que era um vinho ainda jovem. Como o meu conhecimento teórico sobre vinho superava o prático, eu não ignorava que um Barolo deve esperar quase uma década para ser aberto. Aos cinco anos, ele se assemelha a uma criança que no futuro será um adulto poderoso, mas, por enquanto, não descobriu ainda sua verdadeira força. E bebê-lo nessa idade pode se transformar numa aventura frustrante. Minha exaltação desceu mais um degrau quando encontrei num site um exemplar igualzinho ao meu e a recomendação para esperar pelo menos mais um ano. Também ignorei uma informação encontrada na descrição técnica: este não é um dos grandes Barolos. O mesmo aviso duas vezes em tão pouco tempo me pareceu agouro. Mas, me portava como um menino que ganhou uma bola uma semana antes do aniversário, com a promessa de só brincar no dia da festa.
Lá pelas tantas, com muita relutância, acomodei aquele tesouro líquido na prateleira. Mas toda vez que passava por perto dava uma espiada, como se esperasse surpreender algum mistério. Nesse estado de espírito, encontrei um colega metido a conhecedor de vinhos italianos, e não me contive até contar a novidade. E como todo pretensioso, ele se veio logo com essa: “qual é o produtor?” Ao pressentir a falta de solidariedade com o meu entusiasmo, pensei em fingir esquecimento sobre esse dado, mas, tendo em conta que seria caipirice saborear um vinho de nome famoso sem conhecer detalhes de produção, resolvi entregar a resposta. E ele informou: “já tomei, sim. É bom”. Pequena pausa, e com visível cuidado, acrescentou: “Não é um grande Barolo, mas…”. “De novo?” reagi eu, mentalmente. E não ouvi o complemento da adversativa. Apenas me pus a lamentar os níveis de inveja do ser humano.
No entanto, uma dúvida me atormentava. Abrir ou não abrir. Os argumentos contra e a favor empatavam, a impaciência me fazia salivar mais a cada segundo. Por fim, apelei para a minha própria inexperiência, e convenci a mim mesmo que poderia ser um aprendizado importante. Para concluir, o meu paladar não é tão refinado assim, eu corria o risco de não apreciar toda a intensidade do vinho. E além do mais, convenhamos, não era um dos grandes Barolos.
E com esse arrazoado, agendei a degustação para o próximo fim de semana. A partir daí, minhas papilas gustativas se concentraram no antegozo da orgia que estava por vir. E o sábado chegou. Duas horas antes do horário da janta corri para a garrafa com a mesma faceirice daquele guri da bola, quando finalmente teve permissão para brincar. Cada mínimo gesto do ritual de preparar a bebida foi executado com a intensidade de um adolescente apaixonado. Saquei a rolha com muito cuidado para evitar acidentes previsíveis. Seria demais para uma ocasião tão excitante.
E finalmente, alcancei o esperado momento de verter no cálice o celebrado piemontês. Aí, a bola do menino começou a murchar. A realidade não correspondia ao idealizado. Em primeiro lugar, o aspecto visual, bem diferente das descrições. Não era escuro demais. Na verdade, lembrava um pinot noir. No nariz, não aparecia nada do extraordinário buquê descrito na Bíblia do Vinho. Sorvi um grande gole, engoli. Confesso que não senti a terra tremer. Apenas uma sensação de ardência meio estranha na boca, como se tivesse mastigado uma fruta verde. Lá pelo final da segunda taça, com a língua quase anestesiada e a fantasia diluída em frustração, me consolei com uma descoberta valiosa: agora eu sei o que é adstringência.

Escrever Comentário

Seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados *