O Voto da Esperança

Não há mal que dure para sempre, diz um ditado popular. Foi essa crença que nos animou resistir por quatro anos a uma das maiores tragédias da política brasileira, a eleição, em 2018, de um fascista ignorante para o cargo de presidente da república.

Durante o último quadriênio, os brasileiros com o mínimo de capacidade de empatia, de amor pela vida, pela alegria, pela festa, assistiram, em desespero, às piores atrocidades praticadas em nome de abstrações moralizantes como “deus, pátria, família”. Palavras de cunho muito subjetivo para servirem de apoio para um plano de governo.

Na verdade, um segmento da sociedade, adepto do que há de pior na natureza humana, a força bruta, a selvageria, a ignorância, se apropriou desses conceitos e passou a manipulá-los. Como se fossem fatos (concretos), conhecidos e tutelados por todos, com a mesma significação. Comportamento típico de regimes autoritários atender os próprios interesses e insistir na retórica de que são valores sagrados, pertinentes a todos.

Até os símbolos nacionais, como a bandeira brasileira, os seguidores do energúmeno arrebataram. A ponto de pessoas sensatas se sentirem constrangidas de praticar qualquer gesto de patriotismo. Com receio de serem confundidas com os defensores do atraso mental e do retrocesso cultural.

Eis que chegou o dia tão esperado de encerrar essa fase nefasta e retomar o clima de alegria de novo, nossa índole festiva. Nunca tive tanta convicção do candidato a quem daria o meu voto. E ao sair de casa, caminhar em direção à urna, um dado triste da nossa paisagem urbana reforçou ainda mais a minha certeza: o número de pessoas morando na rua, dormindo na calçada, comendo os restos catados na lixeira. Sei que essa situação não é novidade no Brasil, mas nos últimos anos é evidente que a miséria aumentou de maneira revoltante. Somente uma pessoa sem o menor senso de humanidade poderia ignorar a desgraça que se abateu sobre os mais vulneráveis. Seres que vivem numa fronteira muito tênue entre o humano e o animalesco.

Por isso que a eleição deste ano é histórica. É o embate entre duas tendências antagônicas, de um lado, uma postura em defesa do lúdico, da arte, da festa, do conhecimento, da ciência. Do outro, uma obsessão mórbida pela devastação, o louvor a torturadores, liberação do porte de armas, pelo incentivo ao estupro, à misoginia, opressão aos grupos minoritários. A alegria de viver desafiando o instinto de morte; Eros e Tanatos.

Não se trata de visão maniqueísta de pessoa simplória. Como em todo sistema democrático, temos outros matizes atuantes. Mas, qualquer um deles não se afasta substancialmente de uma dessas duas posições predominantes, uma vez que barrar uma significa dar livre fluxo a outra. Não há espaço para neutralidades quando o adversário é uma anomalia que irrompeu das trevas com o propósito de destruir tudo, espalhar o terror e a morte por todos os cantos.

Uma das coisas mais bizarras desta eleição foi a existência daquilo que a imprensa e alguns políticos batizaram como terceira via. Outra proposta política que teria como essência fugir do radicalismo das duas já referidas. É sabido que as boas intenções, às vezes, ocupam o lugar do bom senso. Sentimentalismos ingênuos perturbam o entendimento. Pessoas podem estar até bem intencionadas ao postularem a pluralidade das ideias. A oferta de alternativas para aqueles eleitores que não apoiam nenhuma das correntes majoritárias. Qualquer pessoa no pleno uso das faculdades mentais sabe que essa é a melhor postura para a vivência numa sociedade democrática. Porém, isso só vale para as sociedades em que a democracia está indiscutivelmente consolidada, as instituições republicanas fortes, em perfeito funcionamento.

Por outro lado, uma percepção mais atenta detecta facilmente que não é essa a conjuntura do Brasil de 2022. O atual presidente, candidato à reeleição, usou e abusou do primeiro mandato para achincalhar e desacreditar as instituições, principalmente as responsáveis pelo processo eleitoral. Desrespeitou a Constituição por várias vezes, não teve nem o pudor de ao menos disfarçar as ameaças de cancelar as eleições presidenciais na iminência de uma possível derrota. Também havia, no mínimo, uma vontade indisfarçável de um golpe, na eventualidade de perder a eleição.

Esses sinais de intimidação, ainda que não excedessem o nível de bravatas de um fanfarrão embrutecido, deslumbrado pelas liberdades do poder, só aplacaram quando a comunidade internacional se voltou para o que acontece no país hoje. Não faltaram declarações de autoridades estrangeiras alertando sobre os perigos de rompimento da ordem constitucional no Brasil.

Então, a ordem do dia, no pleito de 2022, não é apenas defender o bom desempenho da práxis democrática, quando é justamente isso que está sob ataque. Em dois de outubro, a necessidade era garantir que a democracia estivesse salva para que pudéssemos, daqui para a frente, seguir tranquilos, na certeza de que esse exercício estará garantido. Nesse caso, a opção pela terceira via, ainda que politicamente legítima, seria assumir o risco de deixar o país eternamente à deriva. Aos caprichos de um homem que já demonstrou várias vezes suas inclinações ditatoriais.

Na hora da apuração dos votos, no nervosismo, a gente mal se continha na frente da TV. De início, grande apreensão, o abominável saiu em vantagem. Calma, ainda faltavam muitos votos. A diferença começou a diminuir, porém, com uma lentidão difícil de suportar. No final, uma vantagem. Bem menos do que se desejava, mas uma vantagem. Porém, não foi suficiente para relaxar os nervos. Sobretudo porque o resultado dessas eleições trouxe duas constatações: primeira, o psicopata tem chances reais de ser reeleito. Segunda, o atraso mental da sociedade brasileira é muito mais profundo do que se imaginava.

Eleger gente que contribuiu para o inaceitável número de mortes durante a pandemia; que boicotou propositalmente a compra de vacinas; que se divertiu imitando vítimas da doença morrendo sufocados por falta de ar; alvo de acusações graves de corrupção. Tudo isso são evidências que deixam atônito um observador leigo, mas que deve, daqui para frente, estar na pauta dos cientistas sociais.

Do que sobrou para o cidadão comum, ainda existe um voto, e enquanto houver voto, há esperança. Temos ainda quase trinta dias para viver na ansiedade da expectativa, mas ainda é possível sonhar com uma mudança de rumo do nosso destino. Paz, alegria. Retomar o espírito festivo e o gosto pela participação na vida pública. Esses são os votos de quem continua acreditando que um novo mundo é possível.

Foto: https://www.tse.jus.br/comunicacao/noticias/2020/Novembro/urna-eletronica-seguranca-integridade-e-transparencia-nas-eleicoes