Panem et circenses – Versão Brasileira

Bem-aventurados os que leram a Bíblia e entenderam alguma coisa do que está escrito nela. Se, além de ler, ainda conseguiu tirar algum ensinamento, moral, religioso, prático ou simplesmente para cultura geral, então esse leitor pode se considerar tocado pela graça divina.

Parece que não é esse o caso do nosso presidente da República, logo ele, que se apresenta como um homem ‘terrivelmente cristão’. Ele deu uma boa amostra de não ter colhido os frutos que brotam naquelas páginas que, para muitos, são a essência da sabedoria divina. Isso aconteceu quando o nosso representante máximo disse que os fiéis seguiam Jesus Cristo porque o Mestre distribuía pão entre os pobres, o que colocaria os primeiros convertidos ao Cristianismo como interesseiros mesquinhos.

Uma simples leitura do Novo Testamento comprova o equívoco grosseiro. Lá em MT, 14,13-21, está escrito, com todas as letras, que Jesus foi seguido por uma multidão para um lugar deserto e afastado. Passadas algumas horas, quando Jesus pregava sob o advento da boa nova, é que os discípulos demonstraram preocupação por não haver como alimentar tanta gente, pois só dispunham de cinco pães e dois peixinhos. Foi aí que o palestrante divino fez o primeiro milagre da multiplicação dos pães e dos peixes, porque já havia uma profusão de esfaimados que passaram a integrar seu séquito e estavam sem comer por vários dias.

Mais adiante, em MT. 15,32-39, já em outro local, Jesus também se enche de cuidados com a legião de desvalidos que o acompanha por três dias e não tem o que comer. Pode-se concluir por essas passagens que essas pessoas eram motivadas por outros valores, que não o interesse material.

Talvez o presidente tenha como referência de comportamento cristão os evangélicos, que seguem os pastores sob a influência da ideologia da prosperidade, pelas promessas de terem os mesmos carrões de luxo e as mesmas mansões nababescas dos líderes das igrejas.

E por falar na obsessão por riqueza dos milagreiros que usam da Bíblia apenas os versículos úteis aos propósitos de manipulação, há uma passagem da Bíblia que o presidente não seria capaz de citar em público, se é que algum dia tomou conhecimento dela. Está nos Atos dos Apóstolos, 2,44, que fala do surgimento das primeiras comunidades cristãs, e como eram administradas.

“Todos os que tinham abraçado a fé reuniam-se e punham tudo em comum: vendiam suas propriedades e bens e dividiam-nos entre todos, segundo as necessidades de cada um”. Ou seja, era um regime comunista. E não é de se admirar que esse trecho tenha sido apagado das Bíblias usadas pelos líderes neopentecostais, com os quais o presidente mantém laços tão estreitos de amizade e crença.

Não há necessidade de ser um adepto da mitologia cristã para se entreter com as lendas das culturas arcaicas que alimentavam as fantasias dos israelitas há mais de dois mil anos. Na verdade, trata-se de um passatempo bem instrutivo, com a vantagem de proporcionar um certo lustre de erudição.

Mas, uma vez que o cristão, de raiz ou de circunstância, recorra a algum mitologema das escrituras para argumentar e dar maior credibilidade a suas assertivas, recomenda-se que ele tenha lido direto na fonte e, de preferência, tenha entendido o que leu. É salutar manter o hábito civilizado da honestidade intelectual. Intelectual? Bem, eu estou falando do presidente Bolsonaro, então, melhor esquecer essa parte.

É preciso salientar ainda que essa lembrança das façanhas de Cristo veio à tona numa analogia com a administração do PT, quando o Partido dos Trabalhadores, leia-se Lula, comandava o governo federal. O presidente atual, devoto de ocasião, falou, em vídeo gravado e disponível na Internet para quem quiser conferir, que o povo brasileiro agiu em relação ao Lula da mesma maneira que os israelitas que veneravam Cristo, os primeiros, por causa do Bolsa Família, os segundos, por causa dos cinco pãezinhos e dois peixinhos.

Não precisa ser um especialista em Hermenêutica para concluir que o presidente igualou Lula ao filho de Deus, aquele que veio ao mundo para redimir os pecados da humanidade. Por isso, muita gente falou que o virtual candidato à reeleição deu um tiro no pé. Considerando-se que o povo brasileiro ainda é majoritariamente professo da fé cristã os eleitores vão correr para as urnas no próximo ano e apressar a Parusia brasileira, ou seja, a segunda vinda do Lula. Bem, não seria a primeira vez, nem será a última, que o presidente mira o próprio pé para praticar tiro ao alvo.

Mas, pode-se pensar de maneira diferente e dar outra interpretação ao fato. Não faltará quem diga que, na verdade, Bolsonaro está propondo uma parceria com o Lula. É provável que ele tenha tomado conhecimento da sentença de Juvenal, o satírico de Roma, do primeiro século da Era Cristã, para quem o povo romano só se interessava por pão e circo.

Então, se o Lula já deu o pão, ele agora assume de vez a alcunha de Bozo, que lhe cai muito bem, e dá o circo. E o que são aqueles encontros com os apoiadores, de manhã, na saída do Palácio da Alvorada, se não um picadeiro sem lona? Que outra pessoa teria o desplante de proferir tantos disparates diante de uma plateia enfeitiçada em busca de milagres? Só mesmo alguém embevecido na índole burlesca. Sem ter o poder da multiplicação dos pães, o guru das massas alienadas se esmera nos números circenses, bravatas, frases de efeito, que caem nos ouvidos dos seus ouvintes como uma fórmula mágica a mantê-los adormecidos.

Porém, pela constante necessidade de aplauso vindo da plateia, o presidente não se deu conta de que seu público é formado apenas por uma parcela da população que está em busca de um anestésico que os mantenha fora da realidade cruel da atualidade brasileira. Grande parte do eleitorado continua faminta, mas com o pé firme na vida cotidiana, esperando o pão nosso de cada dia.

Foto por Franco David em Unsplash