Não entro nessa de que política não se discute. Tenho fé na política.

Eu falo de política. Penso em política, e sempre que a ocasião exige, procuro agir politicamente. E não entro nessa onda de que política não se discute. Tem gente até que compara a identificação política com a fé religiosa. Nada mais falso. Eu teria dito equivocado em vez de falso, mas desconfio que esse posicionamento que iguala a atuação política a uma seita não é um simples equívoco, é uma estratégia de desqualificação das divergências mais convictas. Há uma diferença gritante entre as duas esferas.

A religião, pelo menos aquelas crenças mais autênticas e sinceras na existência de uma força superior que rege a vida dos seres humanos, é uma opção de foro íntimo, reservada à vida privada, onde cada um ora a seu deus preferido da maneira mais apropriada para ficar em paz consigo mesmo e com o resto do mundo. A escolha de um deus de devoção atinge apenas a vida particular do devoto, e a maneira como ele administra seus rituais e seus credos é um problema individual.

Já a política é atuação no espaço público, minha preferência por um projeto político, caso ele saia vencedor, vai influenciar naquelas decisões que atingem a vida de todos os cidadãos que vivem sob a égide das mesmas leis. É por isso que política deve, sim, ser discutida. E é por isso, desconfio eu, que muita gente insiste naquele infundado paralelismo entre política e religião. É uma artimanha para dizer que os ideais mais perseverantes são frutos de uma paixão orientada por valores subjetivos, inconscientes, que devem ser relativizados, ou simplesmente ignorados. Uma atitude típica de mentalidades com tendências autoritárias, aquelas que se dedicam mais a desqualificar as ideias contrárias do que rever as próprias, e se recusam a estabelecer um diálogo com os opositores.

Dito isso, é evidente que as convicções políticas são determinantes de um compromisso ético com a comunidade em que se vive, e mais ainda, com os valores e os princípios que se defende para o convívio em grupo. E aqui entra a questão de ser de Direita ou de Esquerda. Uma formulação tão solerte quanto a outra ou talvez mais cínica, sugere que o alinhamento com um desses dois polos tem as mesmas características do fanatismo religioso.

Naturalmente é mais um ardil para desviar o foco da questão, que se soma com aquele clichê do fim das ideologias, que depois da queda do muro de Berlim não faz mais sentido manter essa polarização ideológica. Aqui é bem pertinente recorrer à autoridade de Norberto Bobbio: “não há nada mais ideológico do que a afirmação de que as ideologias estão em crise. (…). Esquerda e Direita indicam programas contrapostos com relação a diversos problemas cuja solução pertence habitualmente à ação política, contrastes não só de ideias, mas também de interesses e valorações a respeito da direção a ser seguida pela sociedade, contrastes que existem em toda a sociedade e que não vejo como possam simplesmente desaparecer” (Direita e Esquerda, UNESP, 3ª ed.1994).

Mas os ideólogos da não ideologia vão continuar sacando do bolso mais uma dessas simplificações que se instalaram no senso comum, esse manancial de preconceitos bem mais fáceis de assimilar. Dirão eles, “ah, mas a esquerda, quando chegou ao poder, agiu de forma igual ou pior que a Direita que ela criticava”. Argumento tão simplório quanto espúrio. Nesse caso, é preciso lembrar que Esquerda é muito mais do que uma reunião de candidatos que assim se definem para chegar ao poder, ainda mais se, lá chegando, abandonam os preceitos em que se apoiaram nos discursos de campanha.

Ser de Esquerda é justamente seguir uma agenda progressista que orienta as ações no sentido de buscar a inclusão de todos os indivíduos ao usufruto dos bens produzidos socialmente. O militante esquerdista tem em mente uma noção de liberdade muito mais realista, que liberte os seus semelhantes dos condicionamentos impostos pelo meio social, por ser membro de uma determinada etnia, por opções concernentes à vida privada, etc.

Se o partido que chegou ao poder abandonou esses pontos básicos, ele deixou de ser de Esquerda, ou nunca foi de fato. Portanto, enquanto houver agrupamento social haverá conflitos de interesses e consequentemente ideologias opostas, e o espectro político está sempre dividido entre os de Direita e o de Esquerda.

Já que falamos em religião, vale uma analogia. Imagine-se um sujeito que sempre se definiu como católico fervoroso. Um dia ele entra na Igreja e, em vez de acompanhar o ritual da missa com a solenidade exigida pelo momento, começa a cantar, assobiar e dançar, perturbando a concentração dos demais fieis. Seria justo dizer que o Catolicismo acabou, que os católicos, quando entram na Igreja, se põem a cantar e dançar em vez de rezar? Os mais radicais proporiam até o fechamento da Igreja, sob o pretexto de que não haveria mais doutrina para professar. Acho mais sensato dizer que o beato em questão, ou não conhecia a doutrina católica ou, pelo menos naquele momento, teve um lamentável desvio de conduta, mas que isso não compromete a liturgia dos demais, que seguem com fé e com a devida compostura.

Se há uma comparação entre política e religião é essa, a de que a fé mais obstinada nos princípios orientadores das ações das pessoas são inabaláveis, embora a prática, seja por falta de conhecimento ou de condições concretas de realização, possa sofrer algumas variações.

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