Racismo: A História Mal Contada

No Brasil não existe racismo. Pelo menos foi isso que disse há alguns dias o nosso ilustre Vice-presidente da República. E deve ser verdade, porque logo, em seguida, o nosso presidente também falou a mesma coisa para os líderes mundiais, uma assembleia de gente muito importante.

Nosso sempre arguto capitão lembrou àquele augusto conclave de senhores que o Brasil é um país miscigenado. Onde povos de todas as etnias vivem em perfeita consonância, sem nenhum atrito, todo mundo ama todo mundo, no bom sentido, sem descambar para a libertinagem. Não há discórdia. Nenhum tipo de divergência. Deus pode até não ser brasileiro, mas o paraíso certamente é aqui.

E não é de duvidar que o criador tenha habitado estas terras abençoadas antes de subir para o céu. Essa conversa de que aqui ocorrem desavenças de raças é conspiração de invejosos e interesseiros influenciados por espíritos malévolos. Esses que querem desestabilizar a nossa querida nação para se apoderarem dela, das suas riquezas, e impor aqui o domínio do mal, do comunismo e da luta de classes. Sim, essa gente maldosa insinua que o Brasil padece com a desigualdade social e ainda trama para implantar aqui a ideologia dos Direitos Humanos.

Aliás, outra autoridade acima de qualquer suspeita, o presidente da Fundação Palmares. Um senhor descendente daqueles africanos que vieram livre e espontaneamente conhecer o Brasil no tempo da Colônia portuguesa e aqui permaneceram, encantado pelas belezas naturais. Esse senhor falou claramente que a denúncia de racismo estrutural é uma fraude da esquerda comunista que quer causar distúrbio e provocar a revolta nesta Canaã dos trópicos.

Não há porque duvidar da afirmação de potestades tão sérias e dignas de crédito. Só que isso me deixou bastante frustrado e com uma sensação de ter sido enganado, tipo assim, e agora? O que eu faço com tudo o que já estudei? Todos os livros que li sobre o assunto? Sobre História do Brasil, Sociologia? Que me disseram que um dia vivemos numa sociedade escravocrata, que a libertação dos negros escravizados só aconteceu no papel, mas na prática nada mudou? Vou ter que estudar tudo de novo?

Eu, como todo o ser humano, tenho uma necessidade doentia de colocar as coisas todas dentro de gavetas. Onde elas caibam direitinho e não causem nenhum transtorno. Quer dizer, tudo tem de ter uma justificativa. No caso presente, a saída é surfar na onda da Pós-Verdade e criar uma nova explicação para os fatos do nosso cotidiano. Esses que causam sensacionalismo na imprensa diariamente.

Aliás, esses soberanos supracitados vivem dizendo que a nossa imprensa é mentirosa igual a esquerda, que se dedica a inventar conflitos inexistentes só para macular a paz da nossa sociedade. E, se a gente pensar melhor, por essa nova orientação, pode-se ver que eles têm razão. Esses assassinatos de negros que enchem de sangue as páginas dos jornais desonestos é tudo mentira.

Por isso, a gente deve procurar outro caminho para explicar muitas coisas que acontecem. É que nosso povo, por ser muito feliz e viver em solo beatífico, é muito brincalhão. Adora se divertir, aplicar pegadinhas nos outros, sobretudo nos policiais. Quando um agente da polícia vê um negro e já vai sacando a arma, aponta o alvo, mira e aperta o gatilho. O negro se joga no chão, se faz de morto, depois a família dele, que já estava avisada da pirraça, encena um velório cheio de gente, coloca o corpo no caixão e deposita num túmulo. Todos morrendo de rir da cara do policial, crente de que aquilo é de verdade.

Outra narrativa fantasiosa foi a daquele músico que sofreu um acidente com a arma de um soldado do exército e a imprensa fofoqueira divulgou que foi um assassinato. Tudo mentira. O que aconteceu, segundo a nova disposição para explicar os fatos, foi o seguinte: o suposto músico estava dirigindo um carro. Ora, quem poderia imaginar que um negro estivesse dirigindo um carro que não fosse roubado? Pois o motorista recebeu ordem de parar, mas além de não ter obedecido, ainda olhou para o soldado branco com um olhar de intolerável atrevimento. O que se poderia fazer, além de disparar um tiro para alertar que o meliante desabusado estava lidando com a lei? O projétil atingiu a cabeça do rapaz por pura casualidade. Quem mandou um desaforado daqueles meter o bestunto justamente no trajeto da bala? E depois, já que o sujeito estava morto mesmo, um disparo a mais ou a menos não faria a menor diferença e os soldados precisavam praticar um pouco. Então, atiraram mais setenta e nove vezes, só para teste de mira. Mas, o incidente em si não passou de um ato de legítima defesa.

O imbróglio ocorrido num supermercado em Porto Alegre também precisa ser esclarecido sob essa nova ótica. Trata-se de uma história mal contada. Aquele senhor, que a mídia mentirosa chama de vítima, estava prestando um serviço à empresa em questão. O objetivo era testar a eficiência do esquema de segurança daquele estabelecimento. Foi tudo combinado. Num determinado momento, o cidadão se fez de exaltado com uma funcionária. Ela chamou os agentes de segurança, que convidaram o presumido cliente a se retirar, usando de toda educação. Mas, de maneira bem ostensiva para que a freguesia em volta visse o nível de proteção que desfrutavam naquele comércio. Passando a porta de entrada, o falso consumidor se jogou nos braços de um dos agentes e começou a bater com a cara no punho fechado do outro, de modos que o público assistisse e pensasse que se tratava de uma ação enérgica dos agentes de segurança. No final, todo mundo saiu muito contente porque viu que era extremamente seguro fazer compras naquela loja. Mas, aquela gente que não sabe viver em harmonia vai continuar dizendo que foi um assassinato covarde.

É preciso atentar para a índole pacífica do nosso povo, que não vê diferença de cor quando se trata de pessoas. Até o nosso presidente disse que nesse caso ele é daltônico, só enxerga verde e amarelo. Pode-se ver por aí que ele é um ser humano especial e indiscutivelmente adequado para o cargo, um daltônico que enxerga cores. Temos que manter esse sentimento de paz pois é ele que nos conduz no caminho da prosperidade.

É com essa mesma disposição de espírito que várias pessoas, no Facebook, postam uma mensagem que considero de uma beleza verdadeiramente poética: “não tenho amigos negros, eu tenho amigos”. É tão lindo isso. Uma intenção bem ‘clara’ de tirar da mente das pessoas essa ideia inaceitável de que houve escravidão negra no Brasil e afirmar com todas as letras que isso nunca existiu. É uma distorção dos fatos feita por aquelas pessoas infelizes e ressentidas, que costumam preencher o vazio de suas vidas com o estudo da História.

 

 

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