Um mundo de cheiros

Uma das poucas diferenças entre um homem e um guri é o preço dos brinquedos com que eles se distraem. Pelo menos assim diz um chiste popular. Estava eu nesse estado, o espírito a exalar criancice, ao sair de uma loja de vinhos, certo dia, carregando em baixo do braço uma caixa de madeira, de dimensões inferiores às de uma pasta colegial. Dentro dela, vinte e quatro vidrinhos semelhantes a frascos de perfumes, contendo as essências balsâmicas encontradas nos vinhos. Comercialmente denominada kit sommelier, a frascaria vem acompanhada de um Manual Básico de Degustação de Vinhos. Lá estão as informações indispensáveis sobre as características determinantes da excelência da bebida: corpo, textura, equilíbrio, adstringência, retrogosto, e outros tantos detalhes, só percebidos por olfatos e paladares bastante treinados. Como complemento, uma relação dos vários tipos de uva, e as fragrâncias mais comuns a cada uma delas.

Na verdade, o aspecto financeiro da travessura não me assustou, afinal, valor é uma qualidade meio subjetiva, uma relação estabelecida entre a quantia paga e o benefício almejado. Mas confesso que balancei na dúvida entre entrar na brincadeira ou, com a mesma grana, levar uma garrafa de um vinho excelente. Optei pela primeira alternativa. E não me arrependi. Com a disposição de incensar a vida, de ordinário meio inolente, cheguei em casa e me pus a farejar vidrinhos. Porém, as primeiras tentativas de identificar cheiros resultaram em vergonhoso fracasso. Sou vítima de uma anosmia escandalosa. Mas tudo na vida é uma questão de prática, então segui resoluto na minha intenção autodidata, e não tardei a recuperar um pouco da autoconfiança ao adivinhar o aroma de um dos recipientes: baunilha, associação óbvia com sorvete. Mais algumas inalações, outro passo importante em direção ao refinamento pessoal: descobri que cassis é o nome dado pelos franceses a uma variedade da groselha. Essa foi fácil. Bastou sacar a tampa do frasco e encostá-lo no nariz para relembrar os tempos de menino, quando tomava ki-suco.

Isso me levou a uma divagação. As crianças possuem uma capacidade sensorial muito maior que a dos adultos. Maturidade significa adaptação a uma rotina cheia de atividades mecanizadas, e a supervalorização de alguns sentidos. Os outros, rebaixados ao segundo plano, acabam embotados, condicionando o indivíduo a uma existência pobre de estímulos e sensações físicas. Em conseqüência dessa anestesia, muitas das vivências sensuais vividas na infância são esquecidas durante o crescimento.

Como se vê, a compra não foi exatamente um despropósito, visto que alguma coisa eu aprendi. Em primeiro lugar, atinei que um pouco de infantilidade pode nos proporcionar impressões muito especiais, ao recuperar parte da espontaneidade perdida. Em segundo, beber vinho não é uma simples ingestão de bebida alcoólica, pois ativa outros órgãos além do sistema digestivo. Só não entendi qual a importância de saber que o vinho recende a groselha, baunilha, frutas vermelhas, frutas frescas, canela, madeira, couro, pimentão, e mais uma gama inumerável de perfumes, se o prazer na hora da degustação não depende desse conhecimento. Isso o manual não explica. Por enquanto, vou me contentando com um sofisma criado por mim mesmo. Não é importante descrever com exatidão o buquê de um vinho. O que conta aqui é esse retorno a um estado de inocência, quando se tinha uma sensibilidade mais aguçada. A brincadeira toda consiste em refinar os sentidos e assim estar mais receptivo a outras tantas sutilezas da vida.

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