Um país que marcha

Quando eu era criança, nas brincadeiras de roda ou no recreio do colégio, a gente cantava uma musiquinha assim: marcha soldado, cabeça de papel, quem não marchar direito vai preso pro quartel. Era o tempo em que a milicada chafurdava as ruas brasileiras com seus coturnos arrogantes, e o quartel era uma entidade que fascinava e aterrorizava ao mesmo tempo a mente de qualquer criança. Mas na inocência das almas puras a gente se divertia. Marchando e cantando.  

Jamais se poderia imaginar que a marcha ia ser uma prática tão comum na vida brasileira. Ainda hoje, o Brasil é um país que marcha. Tem marcha pra tudo. As mulheres, por exemplo, cansadas de maus tratos, violência doméstica, encoxamento compulsório no ônibus, e outras modalidades de falta de respeito, decidiram radicalizar na provocação e organizam periodicamente a marcha das vadias. Essa é até legal, porque além do público ser majoritariamente feminino, as moças saem pra rua mais à vontade, por assim dizer. Devo confessar que, depois daquela fase colegial, perdi o interesse em andar enfileirado, tendo que acompanhar o ritmo do passo dos outros. Por isso nunca fui participar, nem mesmo ver de perto a tal vadiagem. Mas sempre vi com enorme simpatia esses movimentos que visam libertar as mulheres de seus condicionamentos morais, dos jugos impostos pelo patriarcado. Mais ainda quando essa liberação implica em andar na rua rompendo a opressão de roupas sufocantes. E quando vejo nos jornais as fotos daquela mulherada, fico com a sensação de que perdi alguma coisa.

Tem também a marcha dos gays, embora não receba esse nome. Apesar dos participantes caminharem bastante, o evento recebe o nome de parada, mas na verdade é uma marcha. Aliás, num país que ainda nutre preconceitos medievais sobre comportamento e sexualidade, os gays sempre foram os que mais marcharam no Brasil. O protesto deles é super legítimo e eu dou o maior apoio quando vejo as notícias da passeata, mas pessoalmente nunca me empolguei em participar. Prefiro ficar em casa e assistir pelo noticiário da TV. Questão de opção.

E ainda houve a marcha pela liberação da maconha, mas essa não é bom comentar, porque tem muita gente pirada por aí, que não entende direito o que lê.

Mas nenhum fenômeno social no Brasil se compara em dimensão com a marcha da família com Deus pela liberdade. A começar pela empolgação com que o povo aderiu às propostas de defender os sagrados valores da família brasileira. Só em Porto Alegre compareceram uns quarenta partidários. Um pouco menos do que a versão original e 1964, que computou cento e cinquenta mil defensores dos bons costumes. Mas, os números aqui são insignificantes. O que conta é a disposição dessas nobres almas de colocar o país a marchar em linha reta de novo. Aliás, não por acaso, uma das reivindicações deles é a volta dos militares, através de uma tal intervenção constitucional, que eu não entendi bem o que seja, mas também, eu não sou adepto de marchas, como já disse antes, então que diferença faz se eu entendi ou não. Eu não ia participar mesmo. O que ficou evidente nesse episódio, é que ainda existe gente saudosa do cheiro da farda dos milicos. Na verdade, deve ser uma espécie de saudade atávica do rebenque, porque pelas fotos que vi, tirando meia dúzia de velhinhas aposentadas, que devem ter imaginado que se tratava de uma missa ao ar livre, a maioria dos participantes tinha menos de 30 anos, não viveu o período em que os generais acamparam em Brasília, e não viu o show do general Newton Cruz no dia da votação da emenda pelas Diretas Já.

Outra coisa que não ficou bem claro também é a qual família se referiam as reivindicações. Porque em 1964, ocasião da primeira edição, a família brasileira era mais definida, constituída por um homem, uma mulher no mínimo, eventualmente duas, e talvez alguns rebentos, frutos do amor do casal, que vivia num país abençoado por Deus e bonito por natureza. Mas em 2014, as coisas andam mais complexas. Tem casal formado por dois homens, que adota criança; duas mulheres, que não abrem mão da maternidade e o filho fica com duas mães e nenhum pai; e tem até família em que o homem acasala com uma mulher para reproduzir pelas leis naturais de Deus e da biologia. Sem falar nas pessoas que aderem aos chamados relacionamentos não monogâmicos, que aí é uma confusão danada.

Mas o que importa, a lição que fica de tudo isso, é que o brasileiro é um povo otimista, está sempre tentando melhorar a vida. E gosta muito de sair pra rua pra gritar contra qualquer coisa, o que nos deixa tranquilos em relação ao futuro, pois este é um país que vai pra frente, sempre em marcha. Marchando e cantando

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