Uma Questão de Prefixo

Nunca antes na história deste país um presidente teve tanta dificuldade para implantar um programa de governo, como Bolsonaro. E não só por não ter um programa de governo. Aliás, essa suposta falta de planejamento para tomar medidas administrativas para governar o país é apenas intriga da oposição, ou fake News, como se diz atualmente para rebater críticas.

É que desde os primeiros eventos de campanha, o então deputado candidato já deixou claro que a principal proposta de governo era destruir o que já existia. A começar pela população, onde os pobres formam o grupo prioritário, aqueles primeiros a serem atingidos na fila do abate.

Mas, aí veio a pandemia do novo Coronavírus e começou a dar prioridade para os ricos. Depois passou para as camadas mais carentes de recursos. E, por fim, mostrou-se evidente que o monstrinho não tinha preconceito de classe, ao contrário de muitas de suas vítimas.

O mundo entrou em alerta. Inclusive no Brasil, houve quem chamasse a atenção para a necessidade de medidas preventivas, antecipando que em breve o vírus assassino, que surgiu na China e atravessou todos os oceanos, ia fazer como muitos turistas estrangeiros: se embrenhar nas favelas.

Nesse ínterim, o ex-capitão expulso do exército e agora presidente vislumbrou a possibilidade de pôr em prática o principal discurso de campanha. E se empenhou com intensa eficácia no intuído de não fazer nada para combater a peste malvada. E assim chegamos ao total de 360 mil mortes. Finalmente nosso mandatário nacional estava vendo nascer a possibilidade de deixar morrer aquelas pessoas que não serviam para nada além votar.

Os problemas começaram a surgir quando os políticos resolveram atrapalhar. Talvez por falta do que fazer em casa, no sistema de Home Office, alguns parlamentares inventaram de pedir uma CPI para investigar a suposta omissão.  Exigindo um desempenho mais profilático do nosso presidente.

O presidente do Senado, autoridade com prerrogativas para instalar a tal comissão parlamentar, argumentou, para se abster de responsabilidade, que uma CPI agora atrapalharia o combate à pandemia. Surpresa, a gente se perguntou: ué, mas a CPI não é para investigar justamente a falta de medidas de combate à pandemia?

O assunto virou bate-boca acalorado e a contenda foi parar no STF, nossa corte suprema, que com aquela pose de pai brabo mandou os ‘cepeianos’ pararem de brigar e irem trabalhar em silêncio. Nosso presidente ainda tentou reverter a situação e, com aquele linguajar impecável aprendido na caserna antes da expulsão, xingou e lançou sobre os ministros do supremo alguns adjetivos que é melhor não publicar aqui para manter uma certa unidade no texto.

Aliás, é essa turma de ministros de suprema autoridade que tem atrapalhado com mais frequência o nosso presidente. Todo mundo sabe que o ocupante do Palácio do Planalto é um homem terrivelmente religioso, não faz nada que não seja em nome de Jesus. Inclusive os decretos para liberar o uso de armas de fogo, que aliás, uma ministra do Supremo suspendeu. O pensamento sempre orientado pelos textos sagrados.

Eis, porém, que um governador ateu comunista proibiu os cultos presenciais de qualquer espécie, impedindo o povo de clamar a Deus a cura de todos os males que nos afligem. Indignado com tamanha heresia, um correligionário, irmão em Cristo, entrou com uma ação no Supremo para barrar tanta crueldade e permitir que os crentes, assim como as ovelhas sofredoras, sigam seus pastores no altar da fé.

A decisão, mais uma vez, contrariou o presidente. O ministro nomeado por Bolsonaro até tentou advogar a causa dos cristãos, confundiu a Bíblia com a Constituição e votou pela liberdade de culto religioso, mas saiu derrotado. Para atenuar um pouco o impacto da discórdia, ele condicionou a abertura das igrejas à obediência das regras de proteção contra o vírus, como o distanciamento social e o uso de produtos de higiene.

É possível que o insigne magistrado, ele próprio um devoto confesso, tenha esquecido a experiência do Pentecostes. Na qual o espírito de Iahweh baixou em forma de línguas de fogo entre os fiéis, causando um verdadeiro transe coletivo. Em que as pessoas perderam a noção de tempo e espaço, pois que tinham entrado num espaço sagrado, dentro da eternidade divina. A sorte é que naquela ocasião ninguém precisava lavar as mãos com álcool gel.

Além disso, o ilustre ministro também não entendeu o busílis: o que estava em discussão não era a liberdade de culto, e sim de precaver-se contra a disseminação do vírus. O ministro Barroso até tentou ensinar ao colega desatento que em espaço público deve imperar a razão pública. E que as pessoas podem muito bem ler a Bíblia em casa, sem apresentar perigo para a vida de ninguém.

E agora, nos últimos dias, as coisas se tornaram ainda mais difíceis para o ex-capitão, defenestrado das fileiras do exército. É que o Supremo (sempre ele, isso já é perseguição!) decidiu anular as condenações do ex-presidente Lula, o comunista mor do nosso país, e para desespero geral da nação bolsonarista, o ex-presidente, ex-condenado e ex-presidiário vai poder concorrer à Presidência do Brasil no próximo ano.

E a corte de ministros, em suprema desconsideração com os propósitos de reeleição, o único plano que Bolsonaro demonstrou ter, promulgou essa tresloucada decisão num momento em que não há mais tempo hábil para construir um novo tríplex: encontrar contratos de compra nem comprovantes de propina para condenar o adversário mais forte em segunda instância e considerá-lo inelegível de novo. Ainda mais que o ex-paladino do combate à corrupção no Brasil, que no último pleito se empenhou tanto pela vitória de Bolsonaro, abandonou a Magistratura e foi trabalhar de advogado para ajudar os mesmos que ele condenou quando era juiz.

O nosso presidente, além de viver assoberbado pela determinação de não fazer nada, ainda parece não ter criatividade o suficiente para resolver esse problema da concorrência no pleito vindouro. Sem falar no fato de ter sido abandonado pelos poucos que o ajudaram em 2018, inclusive o ex-juiz.

Como se pode ver, esse caso está cheio de ex. Ex-capitão, ex-juiz, ex-presidente, que quer se livrar desse prefixo e voltar a ser presidente mais uma vez. Do ponto de vista do atual, o melhor seria expurgar todo mundo, deputados, senadores, e principalmente, ministros do STF, ou seja, dispensar todo mundo. Mandar procurar alguma coisa para fazer em casa e pararem de atrapalhar o desenvolvimento do Brasil. Em outras palavras, para deixar bem claro, fechar tudo, assumir o comando sozinho. Botar ordem nessa bagunça onde cada um manda um pouquinho e ninguém chega a um acordo.

Suspeita-se que esse era o único plano real do ex-deputado, quando sonhava em galgar o cargo máximo da nossa combalida república. Transformar todas as autoridades em ex. Afinal, seria só uma questão de prefixo.

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