Uma vacina contra a ignorância

Vem aí mais uma revolta da vacina. Pelo menos no que depender dos pronunciamentos e atitudes do nosso presidente da República.

O negacionismo oficial do governo federal chegou ao ponto de contestar a obrigatoriedade de uma vacina contra o corona vírus. Os motivos reais dessa postura ainda estão encobertos pela névoa do obscurantismo com que ilustre chefe nacional aborda todos os assuntos sérios.

Um dos vários equívocos com que ele costuma desarranjar as mentes mais ingênuas é o direito individual de não tomar a vacina. É inútil polemizar com uma pessoa que se recusa a ouvir um contraditório e não consegue aceitar uma divergência, mas a obrigação de qualquer ser pensante é argumentar que ninguém tem o direito de colocar em risco a vida de outras pessoas.

Um indivíduo que viva sozinho, isolado numa ilha deserta poderia muito bem escolher os meios e o momento da própria morte. Mas, no convívio de uma sociedade, se essa escolha significar o mesmo fim para outras pessoas que não optaram pelo mesmo método, esse indivíduo precisa repensar seu direito de escolha. Parece simples, mas vivemos num país onde até o óbvio precisa ser explicado.

Outro argumento muito duvidoso é o de que a Covid-19 não passa de uma gripezinha. Aqui entra mais uma vez o propósito de negar a realidade e fechar os olhos para as mais de duzentos e quarenta mil mortes, só no Brasil, dessa calamidade que ceifou vidas pelo mundo inteiro. Se é verdade que, em grande parte dos casos, os infectados se curam com facilidade e sem maiores complicações, também é certo que a letalidade de uma moléstia não deve ser medida pelo percentual de vítimas que faz em relação ao total de pacientes, mas pela capacidade que o sistema de saúde tem de evitar os óbitos que ela causa.

No que diz respeito a essa pandemia, para a qual ainda não há um tratamento de eficácia comprovada pela ciência, qualquer autoridade que leve a sério os problemas coletivos, não hesitaria em tomar todas as providências necessárias para evitar o alastramento e as piores consequências de uma tragédia de saúde pública. Em vez disso, o presidente desdenha da ciência e incentiva seus seguidores ao mesmo comportamento.

Todo ser humano com mentalidade negacionista tem como marca mais evidente uma necessidade infantil de se mostrar corajoso e destemido. Assim como quem diz “não tenho medo de nada, encaro qualquer contratempo com bravura”. E, quando se trata de homens inseguros, ainda mais aqueles que receberam uma educação machista, incorporam uma pose de macheza em qualquer conjuntura, a mais simples que seja. Até na circunstância mais corriqueira da vida, lá estão eles engessados numa carapaça de masculinidade pavoneando-se em busca de plateia. É um tipo que precisa ser notado e reconhecido por alguém.

Porém, acontece que coragem não é ausência de medo. Ao contrário, coragem é a habilidade de administrar o medo, a partir de uma avaliação realista dos elementos que o provocam. Além do mais, não faz o menor sentido demonstrar coragem onde ela não é solicitada, numa situação em que o enfrentamento corajoso não poderia ter nenhum resultado positivo.

Para quem está em mar bravio, numa embarcação na qual poderia aportar em terra firme, atirar-se à fúria das águas, ainda que saiba nadar, não é uma atitude de coragem, apenas um delírio suicida de quem não consegue dimensionar o verdadeiro perigo que o ameaça, ou ignora os recursos que tem para a própria salvação. Pois, parece ser nesse sentido que o presidente se move em relação à pandemia do corona vírus. Ele não está enxergando, ou por problema de visão mental ou por negacionismo, os recursos que a ciência está colocando à disposição de quem quiser aproveitá-los.

Se as fanfarronices de valentia não passam de estratégia para esconder um medo, resta saber qual é o temor do presidente, para que ele não consiga relaxar dessa pose de machão intrépido. Certamente não é com o destino dos milhares de brasileiros que fazem parte dos grupos de risco do contágio da doença. Mantemos o foco na possibilidade de busca de reconhecimento e veremos os muitos aplausos que suas sandices recebem de um público cativo, hipnotizado por essa performance histriônica de um canastrão que não faz nada além de repetir o eterno mantra da virilidade postiça.

Nessa linha de raciocínio, ainda constatamos que essa necessidade doentia de aceitação é o que justifica a escandalosa bajulação ao presidente americano, atualmente a caricatura mais horripilante da figura do Super-Homem, que vive acima de tudo e de todos. De tudo o que se viu até agora pode-se apostar que se trata de um temor íntimo, de natureza pessoal, mas que está colocando em risco a vida de milhares de brasileiros, o que demonstra total despreparo para exercer o cargo que ocupa.

Não é de hoje que a índole do presidente, sobretudo no tocante ao intelecto, causa preocupação entre as pessoas sensatas, aquelas que procuram lançar um olhar objetivo sobre os problemas que clamam por solução. Resta-nos torcer para que, quando mais vacinas contra o maldito vírus estiver disponível, que algum assessor mais próximo, um conselheiro com maior senso de responsabilidade alerte o presidente de que a maior demonstração de coragem na administração pública, o que produz maior índice de aprovação é o bom discernimento, o equilíbrio, a defesa de valores republicanos e democráticos. Aqueles que dizem que o poder emana do povo e em nome dele deve ser exercido, em vez de sucumbir a obsessões e deficiências pessoais.

Na falta de outra saída, vamos sonhar com o surgimento de uma vacina contra a ignorância.

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