Vai, malandra

Gosto de me debruçar sobre alguns fatos que acontecem à minha volta. E convenhamos, para quem, como eu, se alimenta do fascínio de querer entender o que se passa pelo mundo, a nossa realidade apresenta material de sobra, entretenimento garantido para quem vive sempre à espreita de algo interessante. De onde a gente menos espera, surge um boato casual, alguém mete o bedelho, às vezes sem saber direito do que se trata, e pronto, está feita a lambança. E aquilo que era para ser um evento privado da vida de uma pessoa vira assunto de interesse público, envolve autoridades, a sociedade toda se manifesta.

A pendenga do momento foi promovida pela funkeira Anitta, ao tornar de conhecimento público uma tatuagem feita no que ela denominou de a parte mais sensível da anatomia humana. Até aí, a sensibilidade física da cantora seria apenas mais uma bizarrice de celebridade, gente que perdeu um pouco da noção de fronteiras entre o público e o privado. Mas, acontece que um protervo desses que se autointitulam cantores sertanejos, cheio de mágoa pelo enorme sucesso da moça tatuada, se achou no direito de meter o dedo nas tatuagens alheias. Estava armado o maior arranca-rabo.

Para usar uma expressão popular, foi o maior tiro no pé, uma demonstração de total falta de tirocínio, pois os fãs de Anitta revidaram com a denúncia quanto à origem do dinheiro que paga as apresentações de certas duplas sertanejas. O feitiço virou-se contra o feiticeiro, a lama respingou lá no Ministério Público, que resolveu investigar a possibilidade de uma farra com dinheiro público para atender interesses privados, onde prefeituras de cidades minúsculas contratam shows milionários de cantores do sertanejo universitário, sob evidente suspeita de pagamento de propina a agentes públicos. Segundo a cantora, ela própria recebeu proposta de altos cachês, em que devolveria uma parte para as prefeituras contratantes.

Não sei se é um caso de mera coincidência – no Brasil tudo acontece de maneira meio desastrada – mas o fato é que os cantores do sertanejo de butique são invariavelmente bolsonaristas, e as prefeituras até agora citadas dirigem pequenas cidades no interior do Brasil, de forte tradição rural, onde a economia é basicamente o agronegócio, ou seja, um grande reduto de eleitores do ex-capitão expulso do exército por incapacidade. É a tal da rachadinha bolsonarista que se profissionalizou e se espalhou por todas as esferas do poder.

Como era de se esperar, as alfinetadas da cantora atingiram a bílis das milicias digitais e as redes sociais transbordaram como cloaca de banheiro público, com acusações típicas do ideário bolsonarista, evidenciando o já saturado nível de machismo e misoginia da nossa sociedade.

O fenômeno Anitta talvez seja mais complexo do que o grau de superficialidade e de preconceito que o senso comum consegue alcançar. Mas é evidente que analisar a trajetória da funkeira mais badalada do momento, tendo por critério apenas a qualidade musical, é um equívoco grosseiro, se não, pura canalhice. O produto que ela vende não tem nada a ver com arte musical, é uma persona. A música é apenas o veículo utilizado para divulgação da imagem de uma mulher jovem, bonita, gostosa, empoderada, livre e independente, que conquistou o mercado internacional com muito trabalho e talento profissional, sem depender de homem para isso.

E essa mentalidade é hoje uma demanda das mulheres de todas as classes sociais.  E mais ainda, a identidade dela é o que ela faz, diferente de certos cantores sertanejos que cantam baladas românticas, mas vão parar nas colunas policiais por agressão à mulher. Ela é de se envolver com o que faz, impõem a personalidade dela no trabalho, chega rebolando, cheia da mítica malandragem carioca e aponta o dedo para os machões financiados pelo agronegócio, desmascarando a hipocrisia dos ataques de um ressentido contra os beneficiados pela Lei Rouanet.

Esses produtores do lixo musical catalogado como estilo sertanejo representam tudo o que Anitta contesta, o machismo, a misoginia, o obscurantismo, a alienação política ao apoiarem uma ideologia que já demonstrou todo o mal que é capaz de causar. E mesmo assim, se apresentam como homens idôneos, pais de família, honestos trabalhadores e até mesmo, por incrível que pareça, artistas.

Independentemente da qualidade musical do trabalho de Anitta, certamente não é por questões de estética que ela se tornou um alvo fácil das hordas da Extrema Direita. E é justamente por isso que devemos aplaudi-la, olhar para onde ela aponta o dedo e dizer: “vai, malandra, ergue a cabeça e mostra a eles tudo o que uma mulher talentosa é capaz de fazer só com o recurso do seu próprio trabalho”. E não esqueça de, de vez em quando, dar uma rebolada mais forte para sacudir as frágeis certezas desses pseudocantores, sempre alinhados aos agroboys, mais identificados com o gado de uma festa do peão boiadeiro do que com qualquer manifestação artística.

Foto: Jamie Mccarthy/Getty Images North America/Getty Images via AFP

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